Joana Barra Vaz em entrevista:”A vontade de tocar é o que mais me inspira”

Joana Barra Vaz em entrevista:”A vontade de tocar é o que mais me inspira”

| Novembro 28, 2016 11:45 am

Joana Barra Vaz em entrevista:”A vontade de tocar é o que mais me inspira”

| Novembro 28, 2016 11:45 am
Joana Barra Vaz Entrevista
© Pedro dos Reis

Joana Barra Vaz editou em setembro o seu novo álbum Mergulho em Loba. A canconetista estreou-se em disco em 2012 com o EP f l u m e: Passeio Pelo Trilho, tendo colaborado musicalmente com José Joaquim de Castro, Tv Rural, Bernardo Barata e, recentemente, com Ricardo Jacinto em PARQUE. Joana é também realizadora de vídeos e do documentário Meu Caro Amigo Chico (2012), sendo co-fundadora do arquivo web “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”.


Estivemos à conversa com a artista no passado mês de outubro. Fiquem com esta cativante conversa.

Threshold Magazine – O que é ser loba?

Joana Barra Vaz – É um estado de espírito que veio da ideia do lobo do mar. Eu sou uma mulher e comecei a falar com um amiga sobre os vários mitos que inspiravam o disco. Uma das perguntas que surgiu foi qual era o papel das mulheres. Tinha lido a Odisseia e nesses mitos do mar as mulheres, habitualmente, ficavam à espera dos marinheiros. Portanto, ser loba é um bocadinho torcer o mito e transformá-lo numa coisa feminina. Porque também é o meu disco, não tem nenhum significado mais complexo do que isso, do que o próprio disco. Tem a ver com o facto de eu ser mulher e querer virar ao contrário esses mitos nalgumas das canções. Noutras canções isso é irrelevante até porque queria que fosse algo mais universal. Surgiu de uma piada e tornou-se o mote do disco.

TM – Antes apresentavas-te pelo nome de f l u m e. Porquê só agora te mostras ao mundo como Joana Barra Vaz?

JBV – F l u m e é o conjunto dos três discos. Na altura estava realizar o Meu Caro Amigo Chico e não queria que as coisas ficassem muito misturadas. Como os tempos se atropelaram, acabei por escolher esse nome. Achava que ia ser uma coisa mais coletiva. Depois até tivemos alguns problemas pois existe um DJ com esse nome. Teve também a ver com o meu assumir nestas coisas da música. Não foi fácil, achava que já não ia a tempo de ser música. Tinha decidido que a minha profissão ia ser o cinema, os vídeos, a realização ou a escrita. Este disco é realmente muito eu, no sentido em que é muito o meu ponto de vista da escrita das canções. Por mais que seja dividido entre os músicos nos arranjos, ficou claro que seria mais lógico assumir o meu nome. A trilogia continua a ser trilogia f l u m e.



TM – Vi no teu site que este álbum foi composto entre 2012 e 2013. Sei também que há algumas músicas da Suite I que foram compostas em 2004 e 2005. Porque só agora é que são editadas?

JBV – Primeiro porque fazia músicas para mim, naturalmente. Quando surge pela primeira vez a oportunidade de gravar em 2011, já tinha composto bastantes músicas. Algumas delas não faziam sentido no primeiro disco, por isso separei-as por cenários geográficos. As que faziam parte deste cenário do mar ficaram postas de parte e surgem agora dentro do contexto. Há músicas muito antigas que provavelmente nunca vão surgir. Ou pelo contrário, de repente lembro-me e apetece-me trabalhá-las. A maior parte dos discos tem as últimas músicas compostas mas há sempre algumas que deram o pontapé de saída. A “Suite I”, a “Ilhas São Demais”, a “Demora” e a “Marinheiro”, eram o iníco e o fim do disco. Eram canções suficientemente boas para pegar nelas.
TM – Afirmas que o Mar é a principal temática deste álbum. Porquê o mar?
JBV – Eu nasci e cresci perto do mar. Para mim ir ao mar, ir à praia é como para as outras pessoas irem ao café. Por outro lado, o nosso universo narrativo, de histórias e mitos em relação ao mar é tão vasto que se mostrou uma ótima oportunidade para o trabalhar. Já tinha decidido que seria um dos cenários e quando surgem essas questões todas do lobo do mar e da loba, percebi logo o ponto de entrada do disco. Pareceu-me bastante natural. Nós temos uma ligação ao mar muito forte, somos um país costeiro, é natural que exista esse imaginário. Eu apenas escolhi trabalhá-lo como objecto específico neste disco. É um cenário com o qual eu convivo desde que nasci.

TM – O que te inspira a compor?

JBV – A composição surge quando estou a tocar, portanto diria a vontade de tocar. É o que mais me inspira. Foi neste processo que surgiram as canções. Hoje em dia considero-me cançonetista, não gosto muito da palavra cantautor, não o que ela significa mas por causa da sonoridade, acho-a uma palavra feia. Penso que cançonetista descreve melhor o que eu tenho andado a fazer. Não me sinto tão cantora, canto por consequência. Hoje em dia inspira-me também saber que há um caminho a percorrer. Sinto que enquanto vou desenvolvendo isso também há retorno das pessoas, da própria consequência de dar concertos. Isso acaba por inspirar-me bastante a continuar. Não preciso de provocar muito, é espontâneo. 

TM – O teu álbum divide-se em Suite I,II e III. Porquê esta divisão?
JBV – Quando readaptei as canções antigas de piano para guitarra, a “Suspensão” e “A Demora” eram tocadas sempre seguidas, de modo aprende-las na guitarra. Foi aí que percebi que respondiam uma à outra. Naturalmente, surgiu o fim dessa sequência de perguntas e respostas, que é a “Sol que Aquece”, a canção mais recente em relação a essas duas. Além disso, acho muito interessante essa coisa das grandes canções, apesar de não ser contemporâneo. Há músicos que já fizeram isso, os Crosby, Stills & Nash, que têm a suite “Judy Blue Eyes”, uma das canções que eu mais gosto neles. Os Pink Floyd também faziam álbuns narrativos e eu cresci a ouvi-los. A Laura Marling também acho que fez isso no disco. As suites só acontecem quando fazem sentido e eu gosto do desafio das suites porque mudam um bocadinho o estilo, desenvolvendo uma ideia própria. Elas estão ligadas mas são também individuais.


Quando percebi que aquilo era a suite de introdução e ainda não tinha um fim para a “Marinheiro”, pareceu-me lógico que esta acabasse numa cidade. Portanto tive logo a ideia de fazer a sua continuação também como uma suite. A “Casa É Canção” e a “Loba” foram compostas quase de seguida, ou seja, nada foi forçado. Quando acabei de tocar a “Casa..”, continuei com aqueles acordes e nasceu uma nova canção. Todas elas nasceram assim. E depois foi um bocadinho como a estrutura narrativa dos filmes, primeiro ato, segundo ato, terceiro ato. Foi ótimo para mim para construir o disco, perceber quais as canções que eram as cenas de passagem. Construí aquilo narrativamente como se fosse um filme porque é a minha formação de argumentista.



TM – As canções que eu gostei mais neste trabalho foram as “Ilhas são demais” e “Casa é canção”. Podes falar-me delas?

JBV – São das minhas favoritas. A “Casa é canção” é um bocadinho o reflexo da austeridade, da crise. Na altura tinha um amigo que estava a passar uma situação muito complicada, em que se colocava essa questão do que era a casa. Eu também tinha passado um pouco por isso, tinha começado a viver sozinha e são perguntas que se colocam numa determinada viragem da tua vida. Foi uma música que até a mim me fez confusão tê-la escrito. Saiu assim toda de seguida, era uma coisa que me estava mesmo a preocupar.


Há uma casa muito bonita na praia de Carcavelos, uma casa de pedra que está fechada e está constantemente a ser caiada. Um dia alguém escreveu na casa “O amor existe”. Mas infelizmente, as pessoas que tomam conta ali da praia devem ter considerado que aquilo era um graffiti e limparam. Mesmo assim, essa pessoa voltou à casa e escreveu “O amor ainda existe” e eu achei piada àquela persistência. A canção está a tentar ir buscar todas as coisas que podem significar uma casa. Há muitas mais mas isso também depende das pessoas.


Ao compor a “Casa…” fiquei completamente arrepiada e muito emocionada. É muito raro isso acontecer, só por duas vezes, com uma canção do outro disco e agora com este disco. É quase um estado de estar a compor e de me estar a aperceber do que está ali naquela canção e do que é que eu estou a querer contar, sem muita noção ainda. Sempre que a cantava arrepiava-me. Numa noite que a cantei, um senhor mais idoso veio ter comigo e disse-me: “A pessoa tem de se esforçar para entrar na sua escrita e perceber o que está a querer dizer, é um bocadinho críptica. Fiquei muito tocado com essa canção. É transversal a toda a gente”. Eu fiquei a olhar para o senhor e a pensar que ele conseguiu exprimir aquilo que eu nem sequer sabia. Fiquei feliz de ele me dizer isso. Parte da minha decisão de ser cançonetista era se o que eu fazia era válido para os outros. Sempre fiz aquilo para mim e nem sou pessoa de ir ouvindo as coisas que vou fazendo. 


Para mim a “Casa…” serviu como uma espécie de luz e esperança numa situação pesada. Acabei por perder a minha casa em 2014, já tinha o disco meio gravado e sentia-me mais confortável porque tinha uma canção que falava sobre uma situação que eu já estava a passar, que dizia que a casa era qualquer lugar. Tive esse feedback de algumas pessoas que têm tido alguns problemas com a casa e ficam muito feliz por a canção ter esse lado universal.





A “Ilhas…”vem muito daquela ideia do homem ser uma ilha. Às vezes estás rodeado de pessoas e não te consegues ligar. Acho que todo o disco é atravessado por essa ideia. Mesmo a coisa do lobo do mar tem muito essa mítica de não te encontrares ou de não te conseguires dar ao outro. A “Ilhas…” parece-me a música mais sonhadora e, se calhar, a mais frontal em relação a isso das pessoas andarem à deriva de si próprias. É um espelho da “Loba” mas de uma forma onírica. Mesmo quando estou a cantá-la parece que estou dentro de uma cena do Lynch, muito surreal, um estado de sonho, de nevoeiro, de paisagem que não distingues. Gosto muito da textura que se ouve na canção. Na noite em que fiz a canção, fiz aquela textura toda com os delays e é o que está no disco. Escolhemos não retirar à canção essa qualidade de quase se lhe pode tocar, mas que não é bem definida e não tem bem pilares. É uma canção que está lá escondida no disco e tenho vindo a ter reações das pessoas. Às vezes chamo-lhe um bocadinho a pérola do disco. 


Estas canções são duas daquelas que nunca foram postas em causa, sempre fizeram parte do disco, enquanto outras tiveram de ser produzidas, melhor ou pior. Estas parecem que têm rédea solta e já lá estavam. A “Casa..” para mim é a mais significativa do disco, enquanto o resto das músicas andam todas ali por metáforas, da solidão e de estares perdido. A “Casa…” é muito concisa naquilo que diz., muito objetiva. Considero-a o centro do disco e fiz questão que isso acontecesse. É uma canção que quando eu toco as pessoas calam-se, nota-se que estão ligadas à letra também.

TM – Como foi trabalhar com a Selma?

JBV – Maravilhoso, a Selma é uma pessoa incrível, tem uma energia muito forte e muito própria! Por isso quando o David repescou a “Tanto Faz” chegámos logo à conclusão que devia ser a Selma a cantá-la. Eu tinha esse impulso e ela aceitou. A canção para ela também significa muito. Falei sobre o porquê de a ter escrito e ela acabou por finalizar a canção comigo. Queria que ela também se sentisse confortável com o que estava a dizer. Cantámos pela primeira vez na semana passada (29 de setembro) e foi muito fixe. A nossa energia é muito imediata e a canção tem uma energia irrequieta, logo tem tudo a ver com a Selma. Às vezes custa-me cantá-la quando ela não está. Já tive duas situações em que a cantei sem a Selma e fez-me confusão. Fez falta a Selma ali.

TM – Como é que correu o concerto na semana passada?

JBV – Correu muito bem, feedback maravilhoso. Uma festa familiar com a estreia da banda. Eu estava muito cansada, dividi-me entre as várias coisas da produção, do disco, ensaios, por isso foi muito bom sentir aquela energia ali toda condensada. Apresentámos o disco na íntegra e as pessoas reagiram bem. É um disco exigente, exige a tua atenção porque aquilo é tudo seguido. Por isso foi ótimo sentir que o público estava a reagir a cada fase do disco. Foi uma grande festa e acabou em beleza com a Selma em cima do palco, o Luís Nunes também, a fazer a percussão.

TM – Já tens mais concertos agendados?

JBV – Vamos ao Mexefest. Vão aparecendo mais novidades, é só estar assim um pouco mais atentos. Vamos fazer uma espécie de segundo lançamento com algumas piscadelas de olhos aos singles mais antigos. Não fizemos isso no Teatro do Bairro. É um dos festivais que eu mais gosto, adoro esta coisa de festival de inverno, tem muito a ver comigo porque sou uma pessoa que tem muita dificuldade em lidar com o som dos festivais. Sou muito exigente nesse sentido, gosto de ir a uma sala e ouvir o som da sala. O Mexefest acaba por cumprir essa exigência. Estou desejosa ver a Elza Soares no Coliseu.

TM – Mergulho em loba representa o meio da tua trilogia. Já tens alguns planos para a terceira parte?

JBV – Tenho planos, tenho muita coisa composta mas ainda estou na parte de mergulhar e discernir. Tive vontade de fazer algumas coisas no verão mas depois as pessoas que tocam comigo e que me acompanham, o João Pais Silva, o Manuel Pinheiro, aconselharam-me todos a acalmar, que isto foi um longo processo e que estava cansada. Eu sai de um processo do Meu Caro Amigo Chico e entrei logo neste. Tenho tendência para isso, para coisas complicadas, que envolvem muita gente. Gosto de partilhar o meu trabalho e que ele deixe de ser meu a certa altura. Agora estou assim, a descansar, a curtir esta parte dos concertos que vão aparecendo, vamos ver o que acontece. As canções já lá estão, parte da ideia também já lá está. Mas primeiro é preciso desligar um bocado do processo.

Também quero que seja um processo diferente, a nível de composição e de arranjos. Gosto de mudar todas essas lógicas. Ainda estou muito dentro desta, preciso de me soltar e ficar um bocadinho vazia para ir atacar aquele grupo de canções. Mas elas estão lá, há uma que não me sai da cabeça. Não sei se vai demorar assim tanto tempo quanto isso. Elas estão mais persistentes, não sei se é de eu andar a tocar mais. Vamos ver o que acontece.

TM – O que tens ouvido ultimamento, algum disco em especial?

JBV – Ouvi muito o Kendrick Lamar. Deixo de ouvir discos quando estou a compor e a escrever. Não quero que a sonoridade influencie. Então quando voltei a poder ouvir discos já o pessoal estava todo a falar do Kendrick e eu perguntava quem é este marmanjo, não faço a mínima ideia quem seja. E fui ouvir. Ele fez um disco que admiro muito. Ouvi muito também a Elza Soares, fiquei rendida. Voltei a ouvir algumas coisas que gosto de ouvir, do Sufjan Stevens, coisas que tinha saudades de ouvir. Ando a ouvir estas coisas portuguesas que andam a sair, o Bruno Pernadas, os You Can’t Win Charlie Brown e o Marrow. Ando também a ouvir o último da Silvia Pérez Cruz. Ando agora a entrar um pouco nos discos destes últimos anos. Vou ouvindo mas se gosto muito faço mesmo um esforço para não ouvir, para não absorver, para que isso não me influencie. Também ouvi o Beck e o Morning Phase. Adoro o Beck, gosto de tudo o que ele faz. Falavam muito da Feist em relação a este disco. Eu gosto muito dela e tive deixar de a ouvir. Também estou super curiosa para ouvir o novo projeto do JP Simões, Bloom.

TM – Concertos que tenhas gostado este ano?

JBV – Sou um bocado bicho do mato, não vou a muitos concertos. Fui ao concerto do Sérgio Godinho com os They’re Heading West com a minha sobrinha e adorámos. Vi muitos concertos na Parede, de improvisação. Vi uma grande concerto de TV Rural, como são todos. Recomendo vivamente, dão sempre belíssimos concertos. Estou desejosa agora de ir a vários concertos e tirar a barriga de misérias. Queria muito ter ido ver os Orelha Negra. Vi bastante concertos, eu é que vou absorvendo. Não sou nada teórica, até admiro aquelas pessoas que conseguem ir aos concertos e escrever sobre eles. Também gostava muito de ter apanhado aqueles concertos da Angel Olsen.
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