[Mergulhador] A Bicicleta

[Mergulhador] A Bicicleta

| Setembro 27, 2015 10:35 pm

[Mergulhador] A Bicicleta

| Setembro 27, 2015 10:35 pm




Uma homenagem com um texto que se centra no universo de um dos melhores artistas de sempre, Syd Barrett. Próxima paragem: surrealismo.








[Céu] Hoje ofereceram-me uma bicicleta. Usada, mas quase nova. Com cores garridas a
combinarem com a minha camisa, cor do “arco-íris”. E tinha um desenho que mostrava um homem
a subir um arco-íris, a sorrir, com as pupilas bastante abertas. Consigo ver que está mesmo feliz e o
sorriso é tão natural como de uma criança quando vê um pai a fazer caretas. O seu fato preto
conduz com o chapéu. Fiquei a analisar o desenho com um interesse especial. Lá fora as nuvens
já rondavam a estrela mais pequena do Sistema Solar, com um olhar ansioso, à espera de algo.
Estava numa despensa, à espera do fim do mundo! Mas adorava a bicicleta. Não sei quem me
ofereceu, apenas vi o objecto hoje de manhã quando fui ver o correio, parado, a olhar para mim. E
porque fui ver o correio se ninguém me escreve? Ninguém perde o seu tempo a fazer longas
caminhadas pelos terrenos da mente. Ou perde? Não sei. Só quero saber da minha bicicleta, da
minha única bicicleta. Não interessa se é boa ou má, é apenas a minha bicicleta. O homem
continuava a sorrir. E foi então que reparei na cesta que trazia. Nela estava algo embrulhado. Não
abri… não me interessa. O homem não sabia o que havia para lá do arco-íris e, no entanto,
mostrava-se feliz. Mas reparei que o sorriso era um pouco forçado. O homem, no fundo, sabia que
o seu destino estava traçado. E o olhar… notava-se algo no olhar. Fiquei curioso com o arco-íris.
Mas não poderia obter qualquer informação acerca dele. Lá fora, as nuvens já cobriam o sol.

[Terra] Como era homem para te dar a minha bicicleta… lembro-me de cada ínfimo momento que
passámos. Desde tu, comigo, nesta despensa, os nossos corpos colados, a saborear cada
segundo do tempo, cada chama do nosso corpo, a recolhermos as nossas glórias. Já te disse que
tem uma campainha que toca? É um som esquisito, mas soa bem. Soa como um pássaro, a ver
uma bela paisagem num pequeno galho. A sentir uma pequena brisa a roçar no seu pêlo genuíno.
Quando o seu som ingénuo perfura o silêncio dos campos e encaixa na luz de um sol fraco,
prestes a deitar-se ao longo de um mar azul “cor do céu” que se “cola” ao horizonte. Eu penso que
esta campainha que toca é a batidas do seu coração, do coração da minha bicicleta. Tu és o tipo
de pessoa que eu conseguiria dar tudo… tudo que quisesses. Reparo agora numa coisa: o homem
está com cara de sério. E a minha bicicleta começa a ter vestígios de ferrugem. Apercebo-me que o
meu bem-estar já é falso. Mas não me sinto triste. Sinto-me vazio. A despensa está mais pequena.
As nuvens que cobrem o sol aparentam ter uma cor acinzentada. E o meu sentimento pela bicicleta
já não é o mesmo que antes. Não é desta que abro o embrulho. Ouço vento lá fora, mas não tenho
medo. Para quê ter medo do fim? É normal a mente estar numa constante luta. Criei alguém dentro
de mim, é certo. Será o homem do arco-íris. Quem é ele? O que quer?

[Inferno] Neste momento vivo apenas de memórias. Não devia, mas o homem do arco-íris não me
deixa sair delas. De ti, apenas me lembro de estares calada durante um dia, sem falares comigo,
depois de uma discussão ardente. Tentei tocar o sino da bicicleta mas fez um barulho esquisito,
como se fosse um pequeno sufoco de um rato, na sua toca, preocupado com o gato, cheio de
baba, à espera de caçá-lo. A parte de trás da bicicleta estava cheia de ferrugem e a roda estava
completamente vazia. Será que estava com dificuldades em respirar? Pobre bicicleta. Já não
consigo sentir nada pela sua beleza. As cores já estão fracas e o homem já não sorri, chora. Chora
como uma criança, quando sente os primeiros suspiros da Terra. O que era feito do homem cheio
de confiança? Já não existe nenhum arco-íris, mas sim umas escadas podres que se dirigem até a
uma nuvem vermelha. Ao lado está escuro, tudo com uma cor preta acinzentada. Lá fora, já não há
sol, apenas um céu com nuvens cinzentas escuras. Neste momento, vejo dois olhos a olharem
para mim, olhos pretos, cujas pupilas são difíceis de reparar. Comecei a chorar. Já não me consigo
lembrar de ti, apenas lembro-me das formas do teu corpo, mas sinto que estás a fugir da minha
mente como uma onda foge do horizonte numa noite de tempestade, à espera de tocar na areia
fina, à espera de ser aconchegada. Eu sou essa onda.
De repente, ouço uma trovoada horripilante. Fiquei surdo e senti lágrimas a escorrerem-me pela
face. Já não sei quem sou! Já não me lembro de nada. Olho para fora e vejo um céu negro cheio
de relâmpagos. Já não vejo relva, vejo terra seca e já não vejo olhos a olhar para mim, mas um
vulto com um chacal, prestes a comer-me. A bicicleta está podre, já não tem cesta, já não tem sino,
está toda enferrujada, sem pneus, apenas com um desenho de um homem nu, deitado, morto, com
nada à sua volta, apenas uma tinta branca. O envelope estava intacto. Fiquei com medo até que
ouvi uma explosão durante milésimas de segundo até acabar deitado no chão como o homem.

[Céu, Terra, Inferno]
Acordei. Olhei à minha volta e estava no meu quarto: como estava um sol
radiante hoje. Era o dia em que me ia encontrar contigo. Ao sair de casa vi a minha prenda de
anos, a prenda que me ofereceste… Uma bicicleta e um fato preto e um chapéu. Reparei que não
era muito bonita, mas tinha um desenho que me despertou. Estava um rapaz com uma camisa da
cor do arco-íris, numa despensa à espera de algo. Parecia estar a abrir um envelope. E consegui
ler o que estava escrito: “Life is just a mirror, and what you see out there, you must first see inside of
you. (Wally Amos)”
THE END 



Artigo escrito por mergulhador.
foto: clique aqui


FacebookTwitter