Reportagem: Xiu Xiu [ZDB – Lisboa]

Reportagem: Xiu Xiu [ZDB – Lisboa]

| Fevereiro 19, 2017 6:06 pm

Reportagem: Xiu Xiu [ZDB – Lisboa]

| Fevereiro 19, 2017 6:06 pm

A última vez que terras lusas tinham visto Xiu Xiu a apresentar-nos todo o seu barulho melódico, nem o Porto nem Lisboa foram os seus anfitriões mas sim Leiria, em 2006, a escutar The Air Force, e outros tantos sons da era tão prolífica para os artistas que seria 2005 e 2006 pós-Fabulous Muscles. Desta vez tudo seria diferente; não só duas datas tinham sido marcadas (Braga e Lisboa) mas nós não iríamos ouvir nenhum álbum nem nenhuma edição recente da banda mas sim um projeto conceptual entre um clássico do cinema japonês, Under The Blossoming Cherry Trees, e a banda sonora tocada ao vivo pelos loucos Jamie Stewart e Angela Seo. O projeto, apesar de eximiamente bem executado, foi mal interpretado pelos promotores da ZDB pelo que assumiram que o concerto não seria um combo entre a visualização do filme e a trilha sonora tocada ao vivo mas sim algo do género do Xiu Xiu Plays The Music of Twin Peaks, o que deixou várias pessoas aquém da experiência que foi “Xiu Xiu Plays Under The Blossoming Cherry Trees”.



Apesar do infortúnio sucedido Xiu Xiu não desapontou. Under The Blossoming Cherry Trees é um filme original do diretor japonês Masahiro Shinoda de 1975 que mistura o fantástico, ação e terror psicológico de uma maneira bastante inteligente com uma ajuda muito peculiar, e o que terá sido o fator impulsionador para a banda querer explorar este projeto, a sua trilha sonora. A trilha sonora deste filme é composta por dois compositores de música clássica japonesa de renome, Shinichiro Ikebe e Toru Takemitsu, mas é de salientar o nome Takemitsu; este senhor foi um dos pioneiros no casamento da música contemporânea ocidental com a música tradicional oriental e muito do seu som pode ser absorvido na visualização do filme. Muito deste conceito foi transposto para a música que Xiu Xiu nos apresentou, mas, claro, com o seu próprio toque: enquanto que no filme a seção sonora inicial é baseada muito no som oriental com elementos sútis típicos de filmes de terror americanos da época, Xiu Xiu apresenta-nos uma parafernália de sintetizadores, gongos e pratos que jogam entre si, criando o mesmo tipo de atmosfera que Takemitsu quis nós submergir em mas com uma abordagem muito mais experimental e moderna. Para além disto Takemitsu tem uma mania que pode ser notada com o uso de certo tipo de elementos para um certo tipo de situações como por exemplo a morte e a loucura, construindo até padrões musicais que podem servir de presságio para o resto do filme. Xiu Xiu serviu-se disso como molde também para a construção da sua interpretação sonora do filme mas de uma maneira mais disfarçada e cínica.



Era de esperar que a eletrónica tivesse um papel fulcral para o que o Jamie e Angela iam nos apresentar mas ao em vez disso teve antes que encarar mais uma de narrador do que personagem principal; os elementos eletrónicos foram de fato importantes mas a estrela da noite foi sem dúvida a percussão. A percussão de Angela que se esmagava contra os nossos peitos e esvaziavam os nossos pulmões até à última mole de ar; a percussão que fazia com que as sinapses nos nossos cérebros parassem todas em simultâneo para um único propósito que se observava na grande tela da sala, a loucura total. Mas enquanto narradora a eletrónica falou bastante; uma espécie de kazoo elétrico foi-nos introduzido por Jamie especialmente quando se tratavam de cerejeiras e é muito aqui que elementos de presságio homólogos a Takemitsu entram em jogo, samples de gargalhadas maléficas e risadas assustadores de crianças, synths que pareciam enfiar uma adaga nos nossos tímpanos e tanto mais que definiu o som eletrónico desta noite.






Entre sons que pareciam ser tirados de Fabulous Muscles: edição esteróides, sons ensurdecedores que cessavam todos instantaneamente e em uníssono, e de crescendos de 10 minutos que atingiam progressivamente clímaxes cada vez mais extasiantes e assombrosos, Xiu Xiu deu-nos um concerto que facilmente pode ser nomeado uma das maiores obras de arte de 2017. Se todo o noise melódico, pânico, loucura e divino se misturassem muito condensadamente numa cabeça de alfinete, “Xiu Xiu Plays The Blossoming Cherry Trees” seria o Big Bang; cada vocalização tenebrosa por Angela uma estrela nova que queimava todas as nossas células, cada som extraterreste uma nébula de poeiras que desabava sob os nossos pescoços.

“Xiu Xiu Plays The Blossoming Cherry Trees” trata-se, infelizmente, de um projeto que muito pouco provavelmente será alguma vez editado em estúdio e portanto é um elogio à efemeridade da arte. E é essa beleza única e singular que Xiu Xiu queriam nos proporcionar. Once in a lifetime.

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