Reportagem: Jarboe + Father Murphy [ZDB]; The Bug + Dylan Carlson [Musicbox]

Reportagem: Jarboe + Father Murphy [ZDB]; The Bug + Dylan Carlson [Musicbox]

| Novembro 17, 2017 4:30 pm

Reportagem: Jarboe + Father Murphy [ZDB]; The Bug + Dylan Carlson [Musicbox]

| Novembro 17, 2017 4:30 pm
 O SILÊNCIO COMO CONSEQUÊNCIA

Conclusão. Intervalo. Conclusão. Em cada um dos momentos – silêncio, silêncio, silêncio. O vale, a praia e o horizonte, a floresta e os recantos são os lugares do eu. Aí nos encontramos, nos confrontamos, nos atormentamos. Olhamos ao espelho não o reflexo, mas a imagem que projectamos, em que nos projectamos, a que gostaríamos de construir e com o qual nos identificaremos numa suspensão eterna do presente. Mais estranho, estranho entre os que nos flagelam por sermos estranhos, aqueles que no silêncio dos concertos integram ritual, comungam da libertação. A ZDB e o Musicbox como espaços de peregrinação, as Quinta-feiras como os novos dias de culto. Jarboe + Father Murphy na sala da Rua da Barroca, Dylan Carlson + The Bug, uma semana depois no Cais do Sodré.
Jamais exercício comparativo, antes uma tentativa para compreender como o silêncio é matriz estruturante em cada um dos concertos, mesmo que à primeira vista não se assuma como tal. Silêncio como matéria individual, silêncio como nó de ligação colectivo. De um lado a disposição da sala com cadeiras, do outro a quantidade de ampegs e subwoofers encostados ao palco. As palavras prensadas e ritmadas, as palavras como o valor da consciência. O drone, o doom de uma corda puxada à exaustão ou o som atirado em forma de sobressalto. A suspensão, a inexistência de aplausos entre “Truth or Consequences” e “The Ferryman” (temas do 10” editado pela Consouling Sounds), com que Jarboe e Father Murphy abriram o concerto ou mandar calar dois elementos do público que teimavam em usurpar o bem comum já no final da actuação de Dylan Carlson + The Bug.
Nenhum como estreia. Relendo um dos posts de Carlos Matos, mentor da Fade In entre outras tantas andanças – “Fez ontem 12 anos que a norte-americana Jarboe, a ex-voz feminina dos Swans, actuou em Leiria, em mais um dos episódios do FadeInFestival. Foi um concerto visceral, de toada ritualística, proporcionado por um quinteto onde, entre outros, constavam dois bateristas e a baixista Paz Lenchantin (A Perfect Circle, Pixies, etc), que levou o público que enchia o Teatro Miguel Franco ao rubro! (…) Os espectáculos deste ano serão bastante diferentes do de 2005 mas não serão menos imperdíveis. É que a acompanhar esta “deusa maldita” estão os intensos experimentalistas italianos Father Murphy, eles que também atuaram em Leiria, num dos episódios do FadeInFestival 2012“. Father Murphy que em 2014 tinham estado na ZDB, concerto anunciado como surpresa, para meia dúzia de curiosos que preferiram não entrar em debandada após a actuação de Scott Kelly. Desta feita a banda italiana a abrir, num regime mais contido, não por isso menos denso, num coro de expiação, esconjurar pecados passados e os que se adivinham, em que o diálogo intermitente entre cordas, precurssão e sintetizadores anunciam noite escura ao mesmo tempo que pressagiam nova descarga emocional com Jarboe. Intervalo curto e entrada sem interpelações. Silêncio antes e depois de “Truth or Consequences”, para no terceiro tema nos brindar com um original dos Swans (“Blood on Your Hands”). “And you spoke a word, no one heard, and from the darkness came the light” sempre como lembrança. Da escuridão a luz, do silêncio a voz que queremos ouvir. Registo compassado, de métrica bem definida, ritual determinado. O tempo certo. Um tempo sem excesso, sem atrevimento de encore, se bem que pedido. A um livro não se acrescenta página, a um concerto não se acrescenta o supérfluo. Com “Indemnity”, “Overthrown” e “Alchemic V” fechava-se o capítulo.
E de regressos. The Bug, que já tinha actuado por duas vezes no Milhões em Festa, em 2015, e com Miss Red em 2016, e Dylan Carlson, agora sem os Earth, visita recente ao Musicbox. Na bagagem com Concrete Desert (Ninja Tune, 2017), ensaio em torno das distopias urbanas de J.G. Ballard. Temperos negros, sonoridades no limite do audível mas a dispensar os earplugs. A jarda tem de estar próxima, tem de ser sentida na sua plenitude. Sem demonstrações visuais que nos distraiam do que é o essencial, nota massacrada, arrastada, atirada à cara com luva preta, que não há ideal de beleza, o futuro é negro e eles sabem-no. Eles e nós sabêmo-lo, uma sala petrificada, imóvel em hipnose para ritual sacrificial. Sem falas, apenas acenos de cabeça para uma plateia que os escuta em meditação reverencial. Um pouco mais de meia sala diga-se, que Lisboa tem destes mistérios insondáveis e a necessitar de análise mais profunda. “City of Fallen Angels”, “American Dream” ou “Other Side of the World” como diferentes quadros de um mesmo universo, de um Goya na sua fase mais negra. Sem encore também eles, que a obra está completa.
O silêncio ou uma oração muda, pelos que partem, por anseios não concretizados, um requiem pelos vivos que somos nós a necessitar de bálsamo, a voltar a crer. Um silêncio único na materialização de uma esperança que tarda.

Texto: João Castro
Fotografia: Nuno Martins (Jarboe + Father Murphy)
Ana Viotti (Dylan Carlson + The Bug) 

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