Snoop Dogg
Snoop Dogg Presents Bible of Love

| Março 16, 2018 8:50 pm
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Snoop Dogg Presents Bible of Love // Snoop Dogg // março de 2018
6.0/10

O ano é 2018. O estado do mundo encontra-se em permanente mudança e confiar apenas num chavão que seja para o definir é cair em erro – espiões russos, Trump, Brexit, Síria, refugiados, garraiada. Pensar no mundo como uma definição concreta passou a ser problemático. Isto é, claro, se o estado do mundo for importante para nós. Snoop Dogg largou a atualidade e embarcou nos livros de história, de onde desenterrou aquele que se tornou num dos grandes precursores da música negra – Snoop Dogg (vulgo Snoop Doggy Dogg, Snoop Lion ou Snoopzilla) tirou da dispensa os categóricos ingredientes com que se baptizou o R&B e hip hop contemporâneos e num só prato infundiu estes sabores com o paladar do evangelho na palavra. O gospel (gospel hop? Jesus rap? J.C. the real O.G.?) ressuscitou após uns anos valentes e continua exatamente como estava quando foi enterrado. O que não são necessariamente boas notícias.
O primeiro contacto com esta dádiva do camaleão do hip hop descendeu dos céus no dia 2 de Fevereiro. “Words Are Few” conta com a participação de B Slade e, por entre uma produção despreocupada/desleixada, somos enfrentados por um videoclip que nos põe na casa do Senhor. À primeira é complicado habituar-nos a esta nova roupagem do rapper americano – desta vez as mulheres que rodeiam Snoop Dogg não estão semi-nuas nem há uma explícita homenagem ao cânhamo – apenas santidade, hip hop e berros que só a emoção de espalhar o evangelho são capazes de explicar (a explicação alternativa ficará sempre atribuída à escolha incrivelmente acertada de artistas convidados). Ainda assim, depois destes 7 minutos de primeiro contacto com o recém-nascido Snoop Dogg, não nos conseguimos preparar para o épico Snoop Dogg Presents Bible of Love.
Depois de “Thank You Lord (Intro)” – uma quase tradicional e espiritual entrada (com algum esforço era possível ouvi-la num álbum de Alice Coltrane) – entramos imediatamente num mundo onde reina a música negra (que fique latente que, apesar de este não ser nem de perto o maior expoente da música negra, é talvez um dos representantes mais versáteis). Antes de nos apercebermos que estamos a entrar numa viagem de mais de duas horas – 2 horas, 13 minutos e 52 segundos, para ser mais preciso – já é tarde para virarmos as costas a este disco (nem que seja pela ridícula curiosidade que a quantidade de convidados – mais de 20 convidados habitam as mais de 30 faixas que compõe o disco). Por vários momentos somos confusos por sequências de temas clássicos de R&B, gospel, G-funk sagrado e hip hop evangélico sem que haja grande tempo para respirar entre músicas, até percebermos verdadeiramente o elo comum – a palavra. “Pure Gold” (com a participação especial das Clark Sisters, um dos expoentes do gospel vocal), surge facilmente como um dos destaques do disco, onde ouvimos canalizada uma intensidade de Aretha Franklin num gospel que lentamente desenvolve para um groove catedrático. “New Wave” (que conta com Mali Music na voz) podia ser facilmente agrupado com os temas mais conhecidos de James Blake pela sua abordagem minimalista ao pop e ao forte foco no piano não fosse pelo final em rap. Logo a seguir, em mais uma reviravolta alucinante, B Slade redime-se de “Words Are Few” num funk endiabrado – perdão, abençoado – capaz de expulsar o capeta pela força da jinga de anca. “Come As You Are” (com o encargo vocal dividido entre Marvin Sapp e Mary Mary) torna-se na melhor “Come As You Are” que eu já ouvi, graças à sua abordagem jazz-estilo-Thundercat com sunshine pop
No entanto, nem tudo corre bem na terra do Senhor –
para além de “Words Are Few” (o tema escolhido, por alguma razão, para fechar o disco), “Changed”, em terra de entrudos, consegue soar ainda mais despropositada, num infeliz (ainda que contagiante) casamento entre trap e gospel, “Crown” e “Call Him” são exemplos desnecessários de pop rap que quase conseguem arruinar um disco inteiro por trazerem os piores clichés possíveis. Numa tentativa de redenção por estes erros de casting, “Voices of Praise” é a faixa de pré-encerramento e eleva as expectativas de uma maneira que “Words Are Few” nunca preencheria – há amor neste G-funk, há polka nesta faixa que finalmente nos dá o Snoop Dogg que merecemos, com um grande final em ascensão orgânica e orgâsmica. Infelizmente – e não me canso de o dizer – ainda de aturar a produção constrangedora de “Words Are Few”. Mas todo o santo cometeu o seu pecado.


Snoop Dogg Presents Bible of Love é um dos álbuns pop mais esquizofrénicos que já ouvi – apesar de ter um tema comum, as constantes mudanças tornam esta experiência sagrada numa montanha russa de emoções, sonoridades e vozes. Onde o álbum melhor encontra a sua perdição é numa distribuição pobre de músicas e sonoridades – há momentos em que corre bem, mas quando corre mal não há salvação possível. No entanto, ficam momentos bons que mostram que, apesar de não arriscar na inovação, Snoop Dogg continua a ser capaz de conjurar música que faz juz ao monumental Doggystyle, não deixando de cair nos erros que comete em álbuns mais recentes: baralhar a relação entre qualidade e quantidade. É impossível condensar tudo o que pode ser dito sobre este disco numa review. Apesar do pensamento ocidental ter formalizado a religião, uma experiência espiritual é digna de opiniões e subjectivismos, sendo que a palavra parafraseada de S. Tomé deve servir de mote: “Ouvir para crer”. Ide, meus filhos, testemunhai e espalhai o evangelho de S. Dogg.
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