Reportagem: Tzusing + NA O MI [Galeria Zé dos Bois, Lisboa]

Reportagem: Tzusing + NA O MI [Galeria Zé dos Bois, Lisboa]

| Outubro 25, 2018 12:44 am

Reportagem: Tzusing + NA O MI [Galeria Zé dos Bois, Lisboa]

| Outubro 25, 2018 12:44 am

A entrada na sala de concertos da Galeria Zé dos Bois faz-se de sobreaviso. Aqui não há enganos nem meios intentos, o público sabe para o que vem e, caso não saiba, a névoa azulada que cobre já totalmente a sala transmite bem a densidade e peso dos sets que se adivinham. 

A noite de quarta, 17 de outubro, traz mais um tiro certeiro dessa eclética caixa de cartuchos que mantém a Zé dos Bois como epicentro da atividade artística contemporânea lisboeta. O anúncio ao cortejo não fez grandes ondas, mas quem esteve sabe que foi cerimonial solene. A abrir a tour europeia que confirma a agitação mundial que tem provocado, Tzusing aterrava pela primeira vez em terras lusas para dar mote a uma noite que contaria quase 4 horas de uma rudeza digna de Berghain (onde o produtor taiwanês tocaria, aliás, precisamente dois dias depois). 

Nascido na Malásia, passando os verdes anos por Singapura, Taiwan e depois Chicago e San Diego, residindo atualmente entre Xangai e Taipei, o que produz reflete essa condição de não-lugar, numa multiplicidade de referências alocada, formando, porém, um todo coerente muito seu. Ainda que conte já com 15 anos como DJ, entre Chicago e Xangai, com sets de um techno envolto de hipnóticas percussões orientais, ganhou maior dimensão com a trilogia de EPs A Name Out Of Place, lançados entre 2014 e 2016 pela outsider L.I.E.S., da cena de house e techno underground de Brooklyn. Somando aparições pela Cititrax, Public Possession, sets no Boiler Room e Red Bull Music Academy, volta em 2017 à L.I.E.S. para o longa duração 東方不敗 – síntese de explorações e incorporação de sonoridades do espectro mais tradicional asiático que revelaria a versatilidade e originalidade que os EPs anteriores já reclamavam. Ainda em 2017 lança pela árabe Bedouin Records o EP In a Moment A Thousand Hits, um notável e fértil desenvolvimento desse legado (que já tem indícios de continuação para um futuro próximo). 

Podemos referir techno, industrial, ebm ou acid, mas qualquer rótulo se revela desadequado e insuficiente perante uma identidade singular e múltipla, que se constrói ao mesmo tempo que urge por desconstruir qualquer noção de referencial originário ou apropriação cultural, num todo intersticial que reflete sobre questões fronteiriças, identitárias, de ‘autenticidade’, definições e valores culturais, numa constante subversão (como havia referido em entrevistas).

Perante este cenário, as expectativas para a evolução da noite de 17 de outubro na pequena sala da ZDB eram altas, e o produto final deixou muito pouco ou nada por concretizar. 



Antes da esperada aparição, a abrir e tomar conta da primeira hora e dez, a jovem produtora lisboeta NA O MI trouxe um complexo set – ácido, de linhas de techno bem trabalhado e uma criativa adição de samples sintetizados – que ocupou muito bem o espaço que lhe pertencia. Parte do coletivo activista queer Rabbit Hole, residente das noites Mina e com o programa Desastre na Rádio Quântica, tem marcado presença cada vez mais assídua na cena techno e clubbing da capital, em espaços como o Lux Frágil, Musicbox, Damas, Desterro, Anjos70, Titanic Sur Mer, ZDB e no Porto, no Plano B. E não será sem fundamento. Num andamento ininterrupto, vemo-la trabalhar com transições elaboradas e progressões sempre variadas que não esgotam a sonoridade. É uma amostra bastante representativa do seu trabalho e da maturidade já atingida, com uma diversidade sonora que percorre vários dos campos mais pesados da eletrónica, acid e techno, para incorporar um estilo bem definido e sempre coerente. 

Dois grandes breaks no set cortam a monotonia que podia eventualmente estar a instalar-se, após os 20 e 30 minutos. A sala vai enchendo, ao longo do set, para aquilo que parece ser uma aceitação consensual de que está definitivamente à altura do lugar que ocupa, nesta abertura para um nome como Tzusing. O set ultrapassa os 60 minutos, mas a atenção do público parece não desligar, mas redobrar. Se os corpos não se mostram mais dados às vibrações que percorrem a sala é porque a elaboração do que NA O MI traz parece requerer continuamente uma atenção quase total. Pergunta-se que e quanta escola terá tido por detrás dos verdes anos que aparenta. Há dois anos a crescer para Lisboa, mas, visto por um olho desconhecido, podíamos estar em Londres, Berlim, nas escolas mais antigas do techno, a ouvir um set de algum nome residente, já consolidado pelos anos e todas as experimentações que o tempo permite.

À hora e meia de NA O MI vemos Tzusing invadir o palco sem lhe cortar a viagem. Fala com ela enquanto o som desenvolve. O set redobra para uma nova progressão e ele permanece, observando. A decisão parece consensual, ela abandona a mesa e passa o testemunho a Tzusing, que vai trabalhando lentamente o que foi deixado, até que a transição final se revela e o som finda. As palmas são batidas para a artista, já ausente, e recebidas por Tzusing. Imediatamente, a sonoridade altera-se. Um ritmo rápido de energia inesperada instala-se. Vocais de rap chinês, vibes de trap, melódicos de instrumentais abrasivos. Não parece nada do que ele já tenha lançado (e não é, de facto). 


Não veremos o produtor passar nenhum dos sons que integram os trabalhos já lançados. Em vez disso, é-nos apresentado um set híbrido, entre uma exploração que se revela claramente renovada perante o que costuma apresentar como DJ – samples de vozes quer ocidentais, norte-americanas, quer asiáticas, ritmos de pop e hip hop – e algumas das sonoridades rudes e graves de tambores, rufares, tinir e zumbir de metais e sopros, sirenes cortantes, a que os últimos trabalhos já nos habituaram. Mas esta última característica muito sua é aqui muito pouco utilizada (isto se estávamos à espera de ouvir algo que lembrasse o LP e EP de 2017). Vemos-lhe as sombras, mas subtilmente, e o que prevalece e grita com uma intensidade ensurdecedora são progressões de um techno muito mais limpo destes experimentalismos e cada vez mais próximo dos seus pares europeus, num certo sentido. Ainda assim, dotados de um dinamismo e virtuosismo que defendem bem a posição em que está.

Durante mais de duas horas, a sala de concertos da ZDB, praticamente cheia, viu-se imersa numa atmosfera cada vez mais densa e condensada, um submundo ácido de estímulos maquinais que prometia converter sem piedade hereges e beatos. Não havia qualquer distância entre os corpos que se moviam, deste lado da mesa, o artista, e o som que reverberava pela concretude do estreito espaço. De uma versatilidade e renovação notáveis, o set podia ser dividido em 4 partes, visíveis por cortes profundos e mudanças de direção que tinham entre si somente uma constante: a força dos elementos que se redobrava no que parecia ser um fluxo de energia inesgotável, cujas transições permitiam somente que crescesse, sem deixar que o público parasse. E este parecia aceitar de bom grado o estímulo, sucumbindo às violentas diretrizes de Tzusing e gritando aos picos das progressões. 

Entre as diferentes partes, vemos inteligentes utilizações do techno mais puro serem contrapostas com misturas de ritmos quer lentos, quer frenéticos, com incorporações quase funk, quase batida, numa promiscuidade de influências. Encontramos samples variados como partes da “Condenado Por Un Idioma Desconhecido” de Ninos Du Brasil, no terceiro quarto do set, ou um remix da “444+222” de Lil Uzi Vert. Vemos construções melódicas de elaboração demorada, pautadas por reverberações de ambient, de uma nebulosidade sombria que guia os corpos em crescendos languidos, (uma nítida quarta parte que se instala) e uma introspeção que demora a transformar-se no ritmo que obriga finalmente o corpo a dançar. Vemos hinos de vozes graves acompanhadas por percussões tribais, numa invocação ancestral que se renova sempre, hoje como há mil anos, e evocações e reminiscências da diversidade de culturas que o acompanha desde infância e tanto caracteriza o seu trabalho.

A intensidade e o frenesim da batida parecem aumentar à medida que o relógio se aproxima da hora de fecho do espaço. 1:40 e o artista inquire o público pelo fim. Conclui o que estava a desenvolver e agradece. O público reage em alvoroço, pedindo mais. Tzusing apresenta um remix atmosférico, distorcido e alongado de Spice Girls, como quem já não quer muito a coisa. O pedido de encore seguinte é recebido com uma saída já ligeiramente jocosa (ainda que genuína) do produtor. “I’ll play something I’ve been listening to a lot, lately”. Segue-se, algo inesperadamente, a “New Rules” de Dua Lipa, que o público reconhece imediatamente. É recebida com sentido de humor, fazendo o público dançar de forma algo dispersa, uma última vez, e dando por findada uma noite que, no mínimo, podemos descrever como surpreendentemente dinâmica e memorável.




Texto: Carolina Couto
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