Reportagem: Sevdaliza [Capitólio, Lisboa]

Reportagem: Sevdaliza [Capitólio, Lisboa]

| Fevereiro 1, 2019 11:57 pm

Reportagem: Sevdaliza [Capitólio, Lisboa]

| Fevereiro 1, 2019 11:57 pm
Hoje recordamos um dos concertos que mais nos marcou no transato ano de 2018. No passado dia 29 de novembro, o Capitólio, em Lisboa, recebia, no que foi sentido como pura aparição sobrenatural, a figura de Sevdaliza, cantora e artista holandesa já querida do público português, depois de por cá passar na última edição do Super Bock Super Rock. 

O concerto foi obra de arte total, reiterando a imagem que a artista já detinha – de multidisciplinaridade, com uso de uma forte componente visual e um impressionante jogo de meios, presenças e ausências em palco. A cada música apresentada a sua performance renovava-se, transmutando-se para algo completamente único e diferente do anteriormente exibido. Os meios, os modos, a sua postura – ora vulnerável, ora inquebrável; ora etérea, ora tangível -, os instrumentos visuais e virtuais utilizados atualizavam progressivamente a conceção que tínhamos do concerto, adicionando-lhe novas vertentes, novas formas de ver e sentir a corporização de uma música ao vivo. Era como se um plano se extravasasse da sua natureza rasa para se transfigurar num prisma em que cada nova face concorre para a extravagância, monumentalidade e originalidade do todo. Já nos era conhecida toda a elaboração e atenção estética com que a artista acompanha os seus trabalhos musicais, através dos criativos e disruptivos videoclips que foi lançando ao longo da sua ainda curta, mas já muito prolífera, carreira musical. Talvez por isso permanecesse a questão de como seria essa indissociável componente visual transmitida para uma apresentação ao vivo. Sevdaliza conduziu um concerto como quem cria de raiz a exposição de uma inteira coleção de obras visuais. Desde a elaboração de cada peça à conceptualização do todo e sua apresentação no espaço e tempo. O resultado excedeu qualquer idealização.



Mas tornemos a coisas mais tangíveis: ainda antes das 21h a artista era ansiosamente esperada pela devoção gritante de um público que tinha tanto de híbrido como peculiar, uno apenas na agitação e veneração evidente pelo que se adivinhava. O volume de corpos que faltava para esgotar o espaço foi bem compensado pelo mar de aplausos frenéticos e gritos de amor com que se brindou o simples apagar de luzes. Soavam os primeiros acordes de “Voodoov” enquanto o palco se envolvia em penumbra, dados pelos já presentes membros da banda que a acompanhou em palco. A artista chegaria só mais tarde, causando de novo grande comoção, após os primeiros versos de “Libertine”, que foram ainda lançados do além por uma voz cristalina, acompanhada de projeções em direto de fios e material no backstage. 

Ao longo do concerto vimos a sua figura passar de um registo cru e imponente, acompanhando o hino “Human” com uma coreografia e postura que prostrariam qualquer diva pop, passando por uma intimista reprodução de “Shahmaran”, com a artista sentada ao piano, para uma ainda não editada “Kalim” onde vemos pela primeira vez uma métrica muito próxima do rap. Vemos os rasgos habituais de trip-hop serem transpassados numa também nova “Rhode” para um registo mais pesado, onde se misturavam registos eletrónicos agressivos, intensificados por um violento strobe enquanto uma operadora de camera captava em direto um close up do seu rosto, em palco, sempre variante, sempre transfigurado para emoções e sensações diferentes. A progressão performática deu ainda lugar à presença de uma bailarina de figurino discreto, que oscilava entre movimentos clássicos, apresentando-se em pontas, ou contemporâneos, interagindo em vários momentos com Sevdaliza. Momentos de uma sensibilidade e beleza extrema, sempre imensos em significado, numa dança de poder, devoção e prostração que podiam muitas vezes ser descritos como maternais.


O seu corpo, em palco, tornava-se muito mais do que veículo material da sua pessoa. Tornava-se parte integrante de uma composição total, emanando uma força intensa e variante, plena de um sentimento profundamente humano, mas ainda de uma certa emoção estética, quase sobrenatural. No fundo, era essa dicotomia e assombro que mantinha todos os olhos lacrimejantes e vidrados na sua figura, sentindo que tudo aquilo era demasiado para absorver e processar humanamente.

A fotogaleria do evento promovido pela Sons em Trânsito pode ser consultada abaixo.



Texto: Carolina Couto
Fotografia: Virgílio Santos
FacebookTwitter