Joan as Police Woman em Ponte de Lima ou uma história de pontes que resgatam
Joan as Police Woman em Ponte de Lima ou uma história de pontes que resgatam
Novembro 25, 2019 8:58 pm
| Joan as Police Woman em Ponte de Lima ou uma história de pontes que resgatam
Novembro 25, 2019 8:58 pm
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Era a manhã de um sábado que iria ser tomado por uma longa tarde de trabalho e em que da noite só se esperava um ansiado abrigo doméstico. Os discretos plim do telemóvel davam conta do casual e relaxado vaivém de mensagens e nem Madrid, do outro lado do “éternauta”, adivinhava o doce frenesim que estava prestes a instalar-se no Porto quando o écran disparou as palavras de Joan Wasser anunciando o concerto em Ponte de Lima nessa noite.
Joan Wasser tem em mim um despertar antigo e lento, anterior ao conhecimento que a liga pessoal e artisticamente a Jeff Buckley e a Rufus Wainwright, um daqueles instalares que não vem de conceitos e escolhas musicais explicitamente informados, mas daquela matéria mais visceral que não muitas vozes transportam em si de forma suficiente. Não conheço a fundo a sua vasta discografia (sete álbuns desde o seu primeiro Real Life e 15 anos de canções), mas o mundo que esta voz transporta foi-se adensando na minha perceção ao longo do tempo e este screenshot explicitou definitivamente esse crescendo de implícitos, materializando a urgência de ver Joan ao vivo. E foi assim que, entre telefonemas, reservas, correrias, persuasões e a generosa cumplicidade de uma grande companheira de literais viagens musicais, nos pusemos em Ponte de Lima numa noite precoce, fria e chuvosa de novembro.
O Teatro Diogo Bernardes foi uma belíssima surpresa, tem tudo o que se deseja para aqueles concertos especiais, de músicos que amamos tanto que fingimos conscientemente que tocam só para nós. Lindíssimo e pequeníssimo (capaz de acolher 310 pessoas) e com aquela atmosfera de “circo punk” que transporta o glamoroso classicismo dos grandes teatros e o misterioso desalinho das caves do rock (vem-me à memória o concerto de Tricky no Coliseu dos Recreios em 1997). O sítio de onde Joan não queria ir embora, como escreveu no dia seguinte.
Uma plateia cheia, um palco minimalisticamente vestido com um piano, uma guitarra e o que Joan nos apresentou mais tarde como a sua banda, uma beatbox. Joan entrou de vestido preto comprido, ombros nus, figura concreta, compacta, quase atlética, traços de rosto bem definidos. Tudo parecia contrastar com a atitude quase tímida e insegura, saudou-nos brevemente, lançou um sorriso discreto e seguiu direta ao piano. Foi assim resoluta que disparou aquela voz dolente, gritante, pungente, tão afirmativa e tão etérea ao mesmo tempo. Tão presente que se entranha nos músculos, ferida e a querer ferir, mas que se esvai de nós antes disso, numa sucessão quase frenética de sons e tons que fogem quando quase os agarrámos.
E poderia ser isto o resumo do concerto porque a voz foi a estrela do Norte nesta noite. Baralhou qualquer setlist que a nossa mente pudesse empunhar. Joan encontra-se em digressão para promover o seu Joanthology, uma antologia que reúne alguns momentos do seu percurso e que inclui inéditos, uma versão de Prince e uma secção “Live at the BBC”, mas da atmosfera fortemente pop e dançável de grande parte das canções que mais a popularizaram, parecia quase não ficar tom sobre tom nesta noite. Quantas vezes dei por mim atordoada no meio das agridoces tempestades sonoras, querendo agarrar os ondulantes e fugidios fios da memória. Mas Joan estava lá para nos salvar. Do diálogo intimista inicial consigo própria ao piano, foi-nos conduzindo até ao centro do seu mundo, passeando-nos espantados pelas canções que em nós residem em ritmos marcados e sedutores, mas agora despidos de si mesmos, nus nas palavras robustas e delicadas, concretas e etéreas, presentes e fugidias, e no esplendor dos arranjos de piano, guitarra e ritmos apenas com a exata medida do essencial. Da intemporalmente sedutora “The Magic” à pungente “Forever and a Year”, que colocou a mais ínfima célula da sala em estado de comoção, passando pela espantosa versão de “Kiss” de Prince, restou-nos a rendição ao terramoto a que submeteu a arquitetura das suas canções. Se quiséssemos explicar a um amigo, não familiarizado com o seu universo musical, o que ela faz às músicas, acredito que bastaria colocá-lo na sala para receber “Kiss”.
Mas não só de diálogo musical se fez a cumplicidade na sala do Teatro Diogo Bernardes. Com as palavras cantadas foram crescendo as palavras faladas e num instante estávamos nós também a dar voz à noite, respondendo às perguntas e provocações de Joan, sorrindo por vezes baralhados com o seu humor subtil, perguntando, sugerindo, cantando, porque, sim, também estávamos lá para a salvar, como ela própria nos transmitiu dizendo que “estava a precisar de nós”, depois de nos ter pedido coro em “Human Condition”. E foi pela graça desta condição humana que se recebeu e ofereceu a mais divina e real das salvações e que no final do concerto Joan desceu definitiva e literalmente à terra para misturar, no átrio do teatro, o seu sorriso fácil, o olhar intenso e a atenção plena à nossa incontida alegria e excitação. Foi um dos momentos mais divinamente mundanos em que me foi dado participar no que à dessacralização artística diz respeito. E quando isto acontece, o nosso mundo enche-se mais de amor e de esperança.
Acordei no dia seguinte com a homenagem de Joan a um seu e nosso grande amor. Era 17 de novembro, Jeff Buckley tinha nascido há 53 anos e ela quis fazer-lhe chegar a sua pungente prece junto a um outro rio.
Texto: Armandina Heleno
Fotografias gentilmente cedidas por: Luisa Rodrigues