Ondulações e um inebriante cheiro a maresia invadem Casa da Música

Ondulações e um inebriante cheiro a maresia invadem Casa da Música

| Novembro 26, 2019 7:49 pm

Ondulações e um inebriante cheiro a maresia invadem Casa da Música

| Novembro 26, 2019 7:49 pm

Depois de uma passagem pelo Tivoli, foi a vez da Casa da Música (Porto, 19 de novembro) mergulhar e deixar-se arrastar pelas ondas de Adriana Calcanhotto, num desaguar de emoções em Margem, nome do seu último álbum e mote para uma tournée por vários países. 

Esta viagem por praias e oceanos iniciou-se com Marítimo (1998). A segunda vaga surge com Maré (2008), dando à costa em Margem (2019). Esta trilogia ao mar reúne, num conjunto de canções, como a própria cantora e compositora brasileira expressou, “um ambiente de mar e de dança, de movimento, de levar e trazer, de ondulação e impermanência”, a fazer lembrar o ritmo, muito próprio, dos oceanos, que neste espaço de 21 anos foram mudando, dramaticamente, e enfrentam hoje o flagelo do plástico, da poluição, da “pegada ecológica”.  

A noite fria e chuvosa emoldurava um quadro que em nada convidava a uma saída. Esta resistência provocada por um “inverno prematuro” foi-se dissipando, desaparecendo, por completo, com a entrada na sala Suggia, onde a pouco e pouco foram tomando assento todos aqueles que ali se deslocaram para ouvir Adriana.  

No palco, o cenário era minimalista. Um pano azul pendurado a fazer lembrar uma onda, um background preto, um ciclorama que ao longo do espetáculo foi mudando como se o dia desse lugar à noite e a noite passasse para o dia, num contínuo movimento de rotação.   

Adriana entra em palco de vestido negro, traçado por uma rede e adornada por um manto de “voile” que esvoaçava a cada movimento. Ouve-se “Mais uma vez, Vem o mar, Se dar, Como imagem, Passagem, Do árido à miragem”, os primeiros 5 versos de “Maré”, seguida de “Porto Alegre”, “Mais feliz” e “Era para ser”. Em “Dessa Vez” a cantora muda de roupagem, trocando o manto pelo violão. Ao entoar “Devolva-me”, o espetáculo ganha intensidade com o instrumental e o back vocals. No final o público reage com fortes aplausos e assobios de ovação.  

O alinhamento prossegue com “Quem Vem Pra Beira do Mar”. O silêncio é quebrado pelo ruído de fundo das ondas a enrolar na areia, a música e as palavras entoadas por Adriana que se entranham, em cada poro da pele, nos arrepiam e nos fazem estremecer com a sublime intensidade poética.  

“Futuros amantes” (cover de Chico Buarque) foi recebida com uma chuva de aplausos e “O príncipe das marés” transportou-nos para uma outra dimensão. Adriana declama o poema ao som da bateria e de uma dança. Alguém descreveu Adriana como detentora de movimentos graciosos, mas também com “Algo de psicadélico e selvagem que brota do seu interior”. Sente-se o cheiro auditivo de “Maresia” que convida o público a um acompanhamento ritmado de palmas.  

Adriana fica imersa numa luz que lhe define suavemente os contornos. Ao ouvir-se “Entre por essa porta agora” o público reage efusivamente a uma das mais belas canções de amor -“Vambora” – fazendo coro com a artista. Os aplausos no final passam a um acompanhamento ritmado, a convite do baterista, dando início a “Marítimo”, no qual a cantora imprime uma ténue e dócil sonoridade. Inesperadamente, surpreende-nos ao “empunhar” um borrifador numa mão e na outra uma espécie de megafone, proferindo “atenção população”. É desta forma que vai apresentando os músicos que a acompanham: Rafael Rocha nos tambores, percussão, assobio e vocal; Bruno Di Lullo no contrabaixo; Bem Gil na guitarra. 

Adriana faz, nesse momento, a primeira referência à partida de José Mário Branco e deixa uma mensagem política sobre a importância de salvarmos a Amazónia. “Ogunté” é um hino de alerta para as questões ambientais e o estado do planeta. Tudo muda com “Lá Lá Lá”, onde o espetáculo foi crescendo e a batida ritmada de palmas foi uma constante. 

Chegamos à “Margem” marcada por uma generosa vénia de Adriana. “Meu Bonde” e o flashar cadenciado das luzes anunciam o fim do concerto, não sem antes se ouvir do público: “Maravilhosa”! 

Uma nova chuva de aplausos reclama o encore, ao qual Adriana acede. Ao contrário do expectável, não canta. Começa a falar do tempo. Do tempo que muda, do tempo de já não termos o privilégio de sermos contemporâneos de José Mário Branco. Um ramo de cravos no palco marcou a sua presença ao longo da noite, tendo sido depois distribuídos pela primeira fila. É-lhe feita então a homenagem com a declamação de “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” de Camões (soneto que inspirou José Mário Branco). Em jeito de confissão diz que ainda pensou em cantá-lo, mas que lhe soava estranho a forma como pronunciava as palavras em brasileiro. Foi um momento de grande emoção para todos os presentes. 

Recomposta, Adriana prossegue: “Eu não formei uma banda, eu peguei uma banda. Assim é mais fácil. Eles quando tocam sozinhos são o Tou no Trio. Eles quando estão no Porto são Tou no Porto”. Refere ainda que apesar da sua juventude se vão apropriando de músicas e, perante a perplexidade do público começam a cantar o tema “Bem Bom”, cantado pelas “Doce”, há décadas, que acaba por acompanhá-los em coro. 

“Eu fico assim sem você” teria sido o desfecho perfeito deste espetáculo. Mas o público não o permitiu e os músicos regressaram ao palco para rematar a noite com “Esquadros”. 


 Adriana sai do palco de cravo na mão e sob uma tempestade de aplausos! 

Texto e fotografias: Armandina Heleno
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