Rui Andrade em entrevista: “Sinto que trabalhar sob um alias foi muito libertador”

Rui Andrade em entrevista: “Sinto que trabalhar sob um alias foi muito libertador”

| Novembro 26, 2019 7:09 pm

Rui Andrade em entrevista: “Sinto que trabalhar sob um alias foi muito libertador”

| Novembro 26, 2019 7:09 pm



Co-fundou a editora experimental madeirense Colectivo Casa Amarela, é uma das metades da dupla HRNS, que partilha com Afonso Arrepia Ferreira (FARWARMTH) e o autor do seu próprio selo, a recém-criada Eastern Nurseries. Rui Andrade, 26 anos, é um dos mais prolíficos produtores do panorama da música electrónica em Portugal e, a avaliar pelo seu extenso currículo, o músico baseado no Porto não tem intenções de abrandar.
O seu novo álbum, Atoll, chegou em setembro sob a forma de um novo alter-ego, Canadian Rifles, e explora a dor provocada pela perda de um ente querido – Clarinha, a cadela de estimação de Andrade, morreu atropelada em dezembro de 2018. É a sua segunda aventura nos lançamentos de maior duração este ano, depois de em junho se ter estreado com o EP Eastern Nurseries, o primeiro lançamento sob a alçada da editora com o mesmo nome.
Em jeito de promoção do álbum de estreia dos HRNS, Naomi, Andrade embarcou numa digressão pela Europa que integrou ainda algumas datas de promoção do seu novo disco a solo, tendo atuado ao lado de nomes tão respeitados como Paul Jebanasam, Yair Elazar Glotman ou Mats Erlandsson
Em entrevista por email, Rui Andrade debruçou-se sobre a produção de Atoll, alter-egos e o futuro da Eastern Nurseries. 



O que motivou a criação da Eastern Nurseries?  
Precisava de ter essa liberdade e de sentir que controlava todas as partes do processo. Tem sido um processo desafiante qb, até porque me propus a fazer merdas que nunca tinha explorado. Masterizei todos os discos que lançamos, comecei a fazer capas, tive de aprender a lidar com templates e impressoras, encomendar cassetes, comprar decks em segunda mão e duplicar cassetes uma a uma sentado na minha sala de estar. Tudo isso foi relativamente novo para mim, mas estou muito satisfeito com os primeiros meses e pela ideia de estar a criar uma plataforma em que possa reunir e unir pessoas que admiro e pelas quais tenho um profundo apreço. 
A cassete parece ser um formato que te agrada. Saudosismo? 
Creio que a cassete já passou há muito o timing do revivalismo. Ainda é dos formatos físicos mais baratos e compactos, são pontos que não se podem discriminar; o primeiro principalmente, especialmente quando estás a gerir uma editora mínuscula com o teu salário. Sinto que a música que faço soa bem em fita, mas nasci em 1993, vivi os últimos dias da era da cassete, não vou estar com merdas e dizer que sinto saudade porque mal me lembro o que isso era. Em 2020 tenciono continuar a lançar em cassete, mas podes contar com lançamentos exclusivamente em formato digital também. 
Canadian Rifles marca uma nova fase na tua carreira. As tuas produções continuam a ser um produto individual, mas desta vez sob um novo alter-ego. O que motivou a mudança de nome? E quais são as principais diferenças entre o Rui Andrade e Canadian Rifles? 
Sinto que trabalhar sob um alias foi muito libertador. Quis cortar um cordão umbilical com o passado e criar um espaço onde pudesse reimaginar a minha música de novo e distanciar-me de mim próprio nesse processo. Continua a ser um projecto a solo, mas quase que visto de cima numa espécie de perspectiva “bird’s eye”. Sinto que Canadian Rifles pode ser aquilo que eu quiser e deixa que me esconda ou exponha à minha vontade. 
Atoll é o teu álbum de estreia como Canadian Rifles. Podes explicar um pouco da ideia por trás do disco? 
Parti para o disco enquanto em simultâneo trabalhava no Naomi com o Afonso. Olhando para trás, para mim ambos os processos viveram muito um do outro. Não fazia ideia do que iria ser, nessa altura Canadian Rifles não existia. A minha vida mudou muito durante o período que levou ao “Atoll”, de concretizar o sonho de tocar em casa no MadeiraDIG a perder a Clarinha poucas semanas depois, houve o melhor e o pior, saí duma relação, mudei-me duas vezes, enfim, percebes a ideia. Olhar para o “Atoll” agora é quase como ver uma escala de tempo geológico lol. As ideias pareciam vir de fora para dentro, é difícil explicar. 

Como foi o processo de gravação?  

Foi um disco que me viu aprender a usar instrumentos novos, a grande diferença “técnica” passa por aí. Comprei um baixo e fodi algum dinheiro num ou outro sintetizador muito específico. Grande parte do disco nasceu pela inocência de explorar todos essas novas portas e ferramentas. 
O teu trabalho tende a ser bastante pessoal. Ao longo da tua carreira, exploraste desde as tuas relações amorosas aos acontecimentos mais imprevisíveis da vida, como foi o caso da Clarinha. Sentes que a dor é o maior combustível para a tua produção? 
É pessoal porque é meu, não sou capaz de fazer música de outra forma, nem posso expressar-me por mais ninguém. Não tento que seja uma merda que não é, mas discordo que a dor seja o maior combustível. Interessa-me música que sangra, mas num sentido bem mais abrangente. A dor e o luto marcam, muito, mas também o amor, a família ou a amizade. São tudo faces diferentes da mesma moeda. 


Este é o teu trabalho mais colaborativo. Para além da participação do Afonso, encontramos também a colaboração inédita com o Miguel Béco (Kara Konchar). Podes aprofundar um pouco a tua relação com o trabalho colaborativo?

Quis trazer um maior número de pessoas para este disco, senti que não o conseguia acabar sozinho. Senti que reforçava o fio condutor do disco, a ideia da crescente importância da solideriedade na sociedade moderna, o senso de comunidade e uma tentativa de desbanalização das relações humanas. O trabalho colaborativo interessa-me muito, a ideia de que o todo é maior que a soma das partes. Ainda esta semana saiu o primeiro passo duma colaboração com o Chris (Burning Pyre) que ambos prentendemos extender, há nova música de HRNS também. Colaborar vai ser sempre parte integral da minha maneira de trabalhar.  



Editaste o teu disco pela editora belga Audio Visuals Atmosphere. Como nasceu a tua relação com o Niels Geybels, fundador do selo? 
Estou muito feliz que tenha acontecido, a Audio Visuals Atmosphere era uma editora que seguia há algum tempo e que respeito muito. Na altura em que fechei o disco e antes sequer de ter recebido o master do Jesse, fi-lo chegar ao Niels. Recebi uma resposta na semana seguinte, nunca tínhamos falado antes mas depressa percebemos que tínhamos uma visão idêntica em relação ao que fazer com o álbum. Tenho a certeza que não foi a última vez que cruzamos caminhos 
Esta não é a tua primeira vez a editar por um selo estrangeiro. Lançaste o teu último disco em nome próprio pela britânica ACR, em 2017, e este ano editaste o álbum de estreia de HRNS pela Warm Winter Ltd. Sentes que a tua música é melhor representada no estrangeiro? 
Não acho que seja uma questão geográfica, num passado mais distante já tive experiências menos conseguidas a lançar por selos estrangeiros, e vice versa. Acima de tudo há que existir aquele clique e conexão com quem está por de trás da editora, é essencial que toda a gente tenha o mesmo foco e respeito mútuo pelo trabalho de cada uma das partes. Tive muita sorte em ter conhecido o Adam (ACR, Warm Winters Ltd.), foi alguém que se tornou um amigo próximo e isso torna tudo bem mais fácil. 
O teu trabalho tem também um sentimento muito romântico que se estende para além da música. É possível encontrar uma estética muito própria ao longo dos teus projetos, desde o uso peculiar da imagem nas diferentes capas às notas que vais deixando na descrição dos teus trabalhos. Quais são as tuas maiores inspirações? 
Lembro-me de dizer ao Niels que na altura em que estava a compor o disco estava super interessado em pintura renascentista, Durer, Cranach etc. Gosto muito da forma como a mitologia e a humanidade se relacionam, a morte, a religião, anjos e demónios não nos seus sentidos literais mas como representações da nossa humanidade e dos nossos problemas e dilemas. Eram tudo temáticas que me estavam a interessar na altura. O que me inspira muda com o as minhas obsessões na altura. Agora acordo de madrugada para ver um lançamento do Falcon Heavy, portanto quem sabe haha. 
Estiveste recentemente em tour pela europa, onde atuaste tanto em dupla como a solo. Conta-nos um bocado da tua experiência. 
Foi surreal, conhecemos pessoas fantásticas. Ter a oportunidade de tocar lá fora pela primeira vez e partilhar o palco com artistas como o Paul, Yair, Mats, a malta de 9t Antiope, etc foi super inspirador e estou muito agradecido por essa experiência. Todos os concertos foram muito diferentes também, passar dum club em Berlim para um set às duas da manhã numa sleepover no coração de Praga… uma matiné pós-rave num bosque com um gerador a diesel, um concerto numa carruagem de elétrico em Bratislava. 
Como é que tens visto a evolução do panorama da música electrónica em Portugal?  
É estranho como o mundo e inclusive a Europa parecem ter fronteiras cada vez mais vincadas, mas no que toca à música e à arte, é cada vez mais complicado olhar para dentro e isolar uma ideia ou um movimento. No entanto acho que há uma geração muito talentosa de artistas baseados em Portugal neste momento. Muitas editoras e projectos interessantes têm surgido e encontrado o seu espaço. Continua a faltar público, uma comunidade mais activa e salas com mais condições, e apoios. Sinto que se tem feito muito com muito pouco. 
Quais são os teus próximos planos?  
Para já estou a orientar os próximo lote de lançamentos da EN, que sairá em Janeiro. Haverá também uma reedição dos dois primeiros EPs de Canadian Rifles em parceria com outra editora e que será anunciada a seu tempo.
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