Homem em Catarse
sem palavras | cem palavras

| Abril 16, 2020 12:00 am

sem palavras | cem palavras  | Fundação GDA | janeiro de 2020
7.5/10

Homem em Catarse o projeto a solo de Afonso Dorido, regressou ao ativo este ano para nos apresentar um trabalho altamente sonante e construído entre as mais belas paisagens da nostalgia poética: sem palavras | cem palavras. Já não é nova a característica sensitiva que o músico aporta na sua obra: sempre construída ao redor de loops de guitarra, num mundo denso onde as texturas sonoras criadas nos conduzem a cenários intermináveis de auto-descoberta, com amplo foco na exploração das sensações.  Esta história começou a ser tecida corria o ano de 2013 quando chegava às prateleiras o primeiro esforço do artista, o EP homónimo Homem em Catarse – onde era já visível que as guitarras comunicavam a mensagem principal numa música estática de voz. 


Com os trabalhos sucessores, Guarda-Rios (2015) e Viagem Interior (2017), o músico passava a apresentar uma preocupação com a inserção de outros elementos no ponto de foco da sua natureza musical: desde a natureza – em grande expansão no primeiro – às origens do, por vezes esquecido, interior português e de toda uma cultura muito portuguesa. A dimensão explorativa do seu som, sempre focado na folk, ganhava novos alicerces com a voz do músico a fazer acompanhar a narrativa sonora criada. Contudo, é neste sem palavras | cem palavras que Homem em Catarse dá o salto na carreira, ao voltar às origens e apresentar um longa-duração onde o som volta a comunicar uma mensagem completa e universalmente compreendida. A exploração profunda da guitarra passa a abranger todo um novo mundo clássico, onde o piano rouba as principais atenções do registo. 




Sem nunca descurar da pureza dos elementos naturais, o álbum tem início com “Tu eras apenas uma pequena folha”, a canção mais curta do disco que abre logo espaço à sondagem de uma sensibilidade emocional tamanha, num tema dócil e simples com recurso exclusivo ao piano. Seguimos viagem com “Hey Vini!”, faixa de dimensão profunda, onde o ouvinte pode voltar a tomar gosto do trabalho que Homem em Catarse tem colocado na calha ao longo dos últimos anos: as tessituras suaves das guitarras em comunhão com a leveza da eletrónica de características ambient. Sempre meigo na abordagem instrumental, Homem em Catarse constrói uma obra singular e um universo musical extremamente intimista. A primeira parte do álbum é sempre muito focada na pureza dos elementos naturais e nesta vontade de extrair do minimalismo uma profundeza artística tão bela e sem recurso a grandes tecnologias. Tanto “Lembro-me de ti mesmo quando não me lembro” ou “Marie Bonheur” trazem-nos a essência autêntica das guitarras nostálgicas – exploradas em força no  cenário post-rock -, enquanto “Hotel Saturnyo” investiga o ritmo possível de executar nos loops da guitarra, apresentando-se como o tema mais compassado destas primeiras cinco ofertas sonoras. 


Nesta poesia inerte de palavras, mas fortemente contruída em emoções e paisagens sonoras imersivas, Homem em Catarse abre a segunda parte do disco com “Calle del Amor”, nova faixa com recurso exclusivo ao piano onde, mais uma vez, somos prostrados perante a estética absolutamente romântica e harmoniosa que este instrumento sonoro, sozinho, consegue criar. “Yo La Tengo” – o tema que lhe dá sucessão – volta a abraçar a guitarra, mas a colocar em pano de foco a eletrónica etérea trazendo ainda, ao posto de escuta e pela primeira vez no desenvolvimento do disco, a presença de arranjos de voz humana. Dentro das mesmas linhas da já mencionada “Hotel Saturnyo” encontramos “Danças Marcianas”, aquela que é a faixa mais dominante deste sem palavras | cem palavras. Com os loops de guitarra a dominarem o ritmo inicial, Afonso Dorido pega ainda no baixo e, em conjunto com a bateria eletrónica de Pedro Sousa, constrói uma balada “neo-gótica” absolutamente conquistadora. Há ritmo – com os compassos do post-punk bastante evidentes – poder, imersão e todo um mundo de atmosferas ora negras, ora de profunda aura celestial. Sem margem para dúvidas, a melhor criação deste disco. 


Já a aproximarmo-nos do fim, voltam a estar em evidência o desenvolvimento mais dilatado e a exploração dimensional de um singular instrumento. O tema “Mar Adentro” é mesmo isso, um reflexo do próprio nome construído entre as paisagens atenuantes dos acordes de guitarra, enquanto que no tema de encerramento, “Casa dos pequenos pássaros” nos volta a colocar perante a extensão delicada que o piano nos oferece. 


Sempre em modo registo intimista, neste novo sem palavras | cem palavras, Homem em Catarse mostra um trabalho que se revela uma boa evolução na carreira, ao integrar a dimensão sonora de novos instrumentos, num álbum exclusivamente instrumental que nasceu de um poema de autoria do músico (e que se encontra presente na edição física do álbum). Além da inclusão de novas ambiências, neste sem palavras | cem palavras destaca-se essencialmente o voltar do Homem em Catarse às raízes do primeiro EP, num disco completamente composto sem uma voz a servir de guia, e com uma sonoridade bem mais matura que no início. Não é um disco de fácil apego a qualquer ouvinte, mas certamente fará as delícias dos mais sensíveis.




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