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Gratitrevas

| Maio 14, 2020 1:15 am


Gratitrevas | Balaclava Records | março de 2020
8.5/10

Larissa Conforto é uma compositora carioca de raízes
amazónicas que ao longo da carreira já trabalhou como produtora artística de
nomes bem-conceituados da música brasileira como Chico Buarque, Gilberto
Gil
, Alceu Valença e Karol Conká. Depois de seis anos como baterista na
banda Ventre e da participação nas bandas de Paulinho Moska, Numa Gama e
Ricardo Richaid e do Bloco de Carnaval Calor da Rua, Larissa reinventou-se
com o seu novo projeto ÀIYÉ, experimentando novos caminhos sonoros.

Além do seu trabalho como compositora, Larissa conjuga as suas energias
artísticas com o ativismo climático e feminista. Faz parte dos grupos
internacionais de ativismo climático Extinction Rebellion e Rhythms of
Resistance, é voluntária no projeto Girls Rock Camp, é membro integrante do
coletivo artvista MOTIM e da promotora cultural SÊLA.

Foi quando participou em 2018 na primeira edição do programa ASA (Arte
Sônica Amplificada) do British Council, com mentoria da artista britânica
Hannah Catherine Jones (NTS, BBC), que Larissa contactou com a metodologia
sonora de colagens e ritmos desconstruídos que incorpora em
ÀIYÉ

© Rodrigo Tinoco 

A viver em Lisboa há cerca de um ano, Gratitrevas é o seu primeiro registo
discográfico e chegou às diversas plataformas digitais a 20 de março com o
selo da Balaclava Records. Enquanto gravava e produzia Gratitrevas, ÀIYÉ foi
ensaiando ao vivo as suas composições por cidades como Lisboa, Nova York,
São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, ao mesmo tempo que
acompanhava a cantora francesa Laure Briard em tour pelo Brasil e vendia
todos os seus pertences para viajar para Lisboa.

Gratitrevas apresenta-se ao mundo como um disco assumidamente político,
íntimo, em que as trevas de cada um (da artista inclusive) e de todos nós
tanto são temidas, como reconhecidas e agradecidas. Ao longo das oito
canções ÀIYÉ aborda a espiritualidade, as saudades da avó, os gritos e
revoltas contemporâneas e universais. A mensagem, essa, é otimista, uma
maneira de olhar para o presente, mesmo com todas as dificuldades inerentes,
e enfrentá-lo, recorrendo a toda a sabedoria ancestral que nos for
possível. 

O disco começa com “Semente”, a primeira música que Larissa compôs na vida
e curiosamente a última a ser finalizada para o disco. Dedicada à sua avó
Isis, este tema presenteia-nos com ritmos suaves (ideal para ser escutada num
sunset) envolvidos numa percussão electrónica ritualista. “Eu sou semente
forte, pode mandar me asfaltar”
é o lema que vai ecoando ao longo da
música, e esta semente, segundo a avó Isis, representa todo o potencial que
existe dentro de nós, toda a liberdade e o conhecimento da natureza que
podemos alcançar, mas que está oculto por inúmeras camadas opressivas. A
semente irá brotar, por certo, demore o tempo que demorar. 

Segue-se “Pulmão”, tema dominado pela percussão assertiva, a qual nos
agarra instantaneamente à melodia e contracena elegantemente com o piano. O
primeiro single de Gratitrevas retrata a sociedade em que estamos sujeitos a
uma enormidade de estímulos e informação e que, por vezes, é preciso afastarmo-nos de tudo isso. A faixa seguinte, “Silêncio”, inspira-se na cena
favorita da artista do filme Mulholland Drive (David Lynch, 2001) e serve de
introdução a “Terreiro”, um dos momentos mais fortes de Gratitrevas. Com
fortes influências de Radiohead, com um baixo a recordar “The National
Anthem” e uma atmosfera textura sintética bem recheada de pormenores
minimais e samples de atabaques, “Terreiro” apresenta-se como um tema de
cariz espiritual e sagrado, onde Larissa retrata a Umbanda, a religião que
segue e se guia pelas máximas do sincretismo, do respeito e da
diversidade.
 



A pérola do disco é da responsabilidade de “O Mito e a Caverna”. Tema
dominado pela spoken word, traz à tona memórias de Otto, conta com a
colaboração de Vitor Brauer e assume-se como uma música de intervenção, com
significado político bem explícito. Este tema resultou de uma tour que os
dois artistas fizeram em 2018 e se vestiram de vermelho, de modo a
consciencializarem as populações de norte a sul do Brasil para as eleições
que se avizinhavam. A letra, intimamente ligada à Alegoria da Caverna de
Platão, é incisiva e perspicaz, reflete sobre o fogo e a queima (o duo
recebeu durante a tour a notícia do incêndio desolador no Museu Nacional do
Rio de Janeiro) e manifesta o seu desagrado com o “esquecimento” da História
mais recente que leva à veneração de mitos: “Os mitos caem por terra, um
após o outro, quando encontram a verdade / E a verdade chega, minha amiga,
ainda que tarde/ (…) Pode ser que tudo isso seja só um sonho / E vamos
acordar quando dissermos todos juntos: Não”
.

Com uma faceta mais convencional, “Isadora” mostra-se como um samba que
Larissa fez para a sua irmã mais nova, com o intuito de ensinar a lidar com
a morte e a solidão. Os dois últimos temas de Gratitrevas surgem num formato
mais introspetivo, repletos de texturas sintéticas. “Sombra (US)” foi
escrita numa altura em que Larissa sofria de depressão, tendo sido musicada
por cima de um sample da sua música favorita de Fiona Apple, “Fast As You
Can”, e foi apenas com a ajuda do produtor Hugo Noguchi que este tema ganhou
vida e feições de Gratitrevas. A música que fecha o disco,
“Astrosoma (Wake Up)”, funcionava como um interlúdio que a artista fazia nos
seus concertos, em inglês e espanhol, de modo a provocar o público que não
entendia as letras em português. Ah! E está relacionada com experiências
ufológicas.

Gratitrevas releva-se como um disco muito agradável e fácil de ouvir,
especialmente em tempos de primavera/verão. Coerente de início ao fim e
sonhador, o disco de estreia de ÀIYÉ é marcado pela experimentação
eletrónica e pela sua produção exímia. Um registo futurista que olha para a
ancestralidade.
 

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