Morte Psquica
Suite N Zero

| Maio 11, 2020 12:00 am
Review- Critica - Morte Psíquica - Suite Nº Zero

Suite Nº Zero | Zodiaque Musique | abril de 2020
8.0/10

O cenário do post-punk contemporâneo português não tem visto uma atividade muito frequente quando comparado com outras andanças sonoras de apetrechos mais eletrónicos e cores vibrantes. O clima, pouco temperamental e a habituação ao sofrimento como parte integrante da vida de um português pode estar na explicação. Este não é um ensaio sobre o sofrimento, mas é um ensaio sobre como a Morte Psíquica está a colocar o cunho português na vanguarda do revivalismo gótico: na lírica e composição sonora.


Já não é de agora que a Morte Psíquica faz escutar-se entre os corações mais melancólicos e saudosistas. O agora projeto a solo de Sérgio Pereira – atualmente sediado no Canadá – teve génese corria o ano de 1993 em formato banda. O grupo passou, postumamente, por um período de hibernação que acordou já com os novos anos 10 em desenvolvimento, durante o ano de 2014. Tendo lançado o marcante Fados do Além em 2016, foi em 2018 com o novo EP Maneirismos que Morte Psíquica se passava a fixar como um one man project e a exportar a sua sonoridade para outros continentes. 


Num ano pautado pela fixação da incerteza e consequente destabilização emocional, chega também às prateleiras o novo longa-duração da Morte Psíquica Suite Nº Zero – trabalho que nasce para deixar o seu marco. O disco, anunciado com o mês de fevereiro passado trazia a boa nova no primeiro single de avanço, “Labirinto”. Numa canção genuinamente melancólica, esculpida entre as arquiteturas sonoras do movimento gótico dos anos 80 e o novo revivalismo post-punk, Sérgio Pereira destaca-se essencialmente como letrista, apresentando uma poesia de traços decadentes e existencialistas a que tão bem nos tem habituado, desde as origens. Se, já com Maneirismos e Fados do Além, era notório que a Morte Psíquica, acima de um projeto musical tecia toda uma conspurcação  lírica em força, neste Suite Nº Zero isso tornou-se claro através do tema de avanço, essencialmente no refrão: “Uma coisa que me põe triste é que não exista o que não existe“. 


Suite Nº Zero traz uma coleção de oito temas onde se incluem os já anteriormente apresentados “Olham e Sorriem”, “Sensações Descontroladas” e “O Conforto do Desconforto”, presentes no EP Maneirismos (Z22, 2018) e ainda “Fado da Vertigem”, tema presente na coleção Z vinte e dois compilation, editada o ano passado. Além destes temas – que foram regravados e novamente masterizados – destaque também para “Em Teu Sonho Acordado”, tema original de Ode Filípica, a que Sérgio Pereira deu uma nova roupagem no espectro sonoro, mantendo a lírica originalmente escrita por Carlos Matos (Broto Verbo, Fade In). A cover foi feita originalmente para a compilação de tributo à Ode Filípa, intitulada Misantropia e editada em 2018 pelo selo ANTI-DEMOS-CRACIA. Também na produção e promoção do novo disco participou a artista canadiana Xarah Dion com o trabalho audiovisual para o tema “Labirinto”, um vídeo de estética lo-fi que talhou uma espectativa sensacionalista para aquilo que viria a ser Suite Nº Zero na íntegra. 




Um facto que se tornou óbvio e bastante claro com as edições sob o cunho Morte Psíquica é que este é, sem margem para dúvidas, um dos melhores projetos portugueses na atualidade, a atuar dentro das estéticas do post-punk contemporâneo e das tonalidades mais góticas da música rock. Há poucos que se dedicam ao espectro, mas nenhum deles tem a capacidade de atingir a amargura do existencialismo como a Morte Psíquica o faz. Não é apenas o trabalho das guitarras cintilantes contrastado pela decadência vocal que tece uma unicidade singular na produção resultante, mas claramente, a mensagem que a música aporta consigo. Escrita de forma brilhante e carregada em nefastas metáforas, Sérgio Pereira pode facilmente ser comparado a uma Florbela Espanca destes novos anos 20, mas menos romântico e mais pessimista. No trabalho dos dois solidão, tristeza e saudade intercalam em sintonia, mas Sérgio Pereira conduz o ouvinte a um rumo mais decadentista e depressivo. 


Inexoravelmente o existencialismo e a ausência de sentido são metaforicamente explorados em temas como “Olhem e Sorriem”, como se ouve: “A minha alma partiu-se // como um vaso vazio” (…) “olha os cacos, absurdamente conscientes // mas conscientes de si mesmos // não conscientes deles“. Em “Alienado”, como o próprio nome indica, Morte Psíquica foca-se no tema do alienismo, que continua a ser explorado com o sucessor “Fado da Vertigem”: “Quando olho para mim // não me percebo // tenho tanto a mania de sentir // que me extravio às vezes // ao sair, das próprias sensações que eu recebo“. Já na música de despedida, “O Conforto do Desconforto”, Sérgio Pereira arrasa com a temática da auto-aversão: “Meu cérebro faz lembrar descomunal jazigo // nem a vala comum encerra tanto morto // o tédio, fruto infeliz da incuriosidade // alcança as proporções da imortalidade“.




No espectro sonoro esta tendência para o profundo descontentamento continua em vigor, embora pontualmente afagada pelo brilho luminoso do trabalho da guitarra. Apesar disso, ao longo deste Suite Nº Zero é o lado monocromático que vigora em força, essencialmente ao nível das linhas de baixo que, na maioria das vezes, se sobrepõem ao ritmo orgânico produzido pela bateria. Ainda no campo da estética sonora, menção para os primeiros segundos de “Em Teu Sonho Acordado” a mostrar todo um lado semi-industrial e experimental face à abordagem usual da Morte Psíquica. O tema destaca-se essecialmente por se apresentar como uma excelente reinterpretação do tema original. Arriscar-me-ia a dizer que melhor que o original, que é coisa rara no “mundo das covers”. 


Voltando à ideia inicial de que tão poucos artistas portugueses conseguem, no campo da vanguarda dark underground, atingir o equilíbrio harmonioso entre lírica e composição sonora, eis que Morte Psíquica volta a frisar que está aí com uma fórmula tão única e singular para iluminar almas em sufoco. Suite Nº Zero compila oito temas que coadunam, num disco moderno, uma estética ora clássica e revival, mas na essência sempre muito emotiva. Numa mensagem que permanecerá intemporal enquanto não se desacelerar o crescimento de expectativas irrealistas em vigor na sociedade atual, Morte Psíquica oferece um meio de extravio da realidade cruel num ponto de compreensão e conforto para as almas mais perdidas: a Suite Nº Zero.




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