Cinco Discos, Cinco Críticas #57

| Junho 8, 2020 12:51 am

Em revisita às edições que marcaram os últimos três meses no panorama da música underground e independente podemos encontrar os Window com o seu Endless Cycle EP (2020, Third Coming Records); em território português destacam-se os lobo mau com na casa dele (2020, self-released); passamos para ambientes mais etéreos com a eletrónica cativante dos DSM-VInto Nothing/Function (2020, Third Coming Records); prosseguimos viagem até a Toronto para ouvir o novo disco das Pantayo, o homónimo Pantayo (2020, Telephone Explosion) e, para finalizar, culminamos na Califórnia com destino ao surpreendente The Mother Stone (2020, Sacred Bones Records) de Caleb Landry Jones.


As opiniões relativas aos mencionados trabalhos podem ser lidas abaixo, acompanhadas pelo respetivo player.


Endless Cycle | Third Coming Records | março de 2020 

7.5/10 

A trabalhar nas entranhas territoriais do EBM, industrial e techno dark, os Window regressam com todo o vigor, poder e imersão em Endless Cycle. A primeira edição da dupla que junta Dylan Travis (Some Ember) e Reuben Sawyer (The Column, Anytime Cowboy) no catálogo da iminente Third Coming Records mostra como eles são um segredo bem guardado no mundo das intermitências da escuridão underground. O projeto – que conta já com alguns anos de bagagem e lançamentos pela Total Black e Fallow Field – regressa agora em Endless Cycle com cinco fustigantes temas a explorar em força as caixas de ritmo, numa eletrónica que é crua, dinâmica e rodeada de atmosferas poderosas. 
Marcado pelas ondas negras que aporta – onde ganham especialmente destaque a voz carregada em ira e revolta -, os Window apresentam um ciclo (quase) interminável de ansiedade, retratada numa onda eletrónica minimalista de energia amplamente brutal. Exemplo fidedigno destas ambiências industriais da penumbra pode ser encontrado na faixa homónima “Endless Cycle”, noutras vertentes em “Desert” – a explorar um ambiente sonoro onde a dark-techno vigora em força – e ainda em “The Stone”, o tema que o encerra. A par disso, há também espaço para exploração de sintetizadores apoteóticos e aditivos, como se sente logo com o tema de abertura em “Ashen” ou ainda em “Carbon”, uma das mais estimulantes faixas da obra onde tanto Dylan Travis como Reuben Sawyer dão a sua interpretação vocal (a par do que já tinha sido feito anteriormente em “Endless Cycle”). 
Em suma, Endless Cycle é um retrato musical poderoso que conspurca confronto e agonia num mundo tão incerto e curel. Uma bomba atómica de energia negra para consumir em cassete.
Sónia Felizardo



na casa dele | self-released | abril de 2020
7.5/10 

Os portugueses lobo mau apresentam-se como uma trindade de talentos unidos como unha com carne, na forma da dualidade vocal de Lília Esteves e David Jacinto e dos acordes da guitarra de Gonçalo Ferreira. Com o primeiro álbum na casa dele, os lobo mau apresentam uma sonoridade geralmente serena e enraizada na folk ora acústica, ora elétrica, mas sempre direto ao assunto e sem grandes pretensões ou artifícios insinceros. 
Ao longo do álbum, os três elementos do projeto demonstram o seu ponto mais forte: uma afinidade mútua e invejável, culminando numa força única que guia o ouvinte por um emaranhado de vozes melodiosas e harmoniosas, de acordes dedilhados cativantes e, de outras texturas sonoras como contrabaixo ou o violoncelo que batem certo com a atmosfera geral tomada a cabo. E é por via deste aglomerado sonoro que o ouvinte é transportado para relatos de histórias e vivências de convívio, de amizade e amor… em suma, uma “celebração” do que é – para o bem e para o mal – tido como corriqueiro e mundano nesta vida agridoce (fazendo lembrar nomes como J.P. Simões e outros cantautores a braços com as agruras do dia-a-dia). 
De modo geral, na casa dele é uma experiência bastante agradável e com uma sensação bastante familiar, graças a um equilíbrio certeiro entre os elementos dos lobo mau e as suas letras empáticas que certamente ressoarão com quem as ouvirá. De mau, este lobo tem pouco.
Ruben Leite



Into Nothing/Function | Third Coming Records | maio de 2020 

8.0/10 

Os DSM-V – dupla que junta Buzz Kull e Morgan Wright no mesmo corpo musical – estrearam-se nas edições de estúdio com um single duplo Into Nothing/Function que chega às prateleiras para atenuar as saudades da eletrónica etérea de vestes negras. Oriundos da Austrália, os artistas tomaram a decisão de formar um novo projeto criativo cuja sonoridade consegue metamorfosear-se entre o poder iminente da eletrónica fustigante e as paisagens contemplativas da eletrónica etérea. 
Para se apresentar ao mundo a dupla não escolheu uma comum nomenclatura, preferindo arriscar num acrónimo que traz um conceito intrínseco por trás. DSM-V apresenta as letras iniciais do Diagnostic Statics Manual (Revision Number 5), um manual feito pela Associação Americana de Psiquiatria que define como é feito o diagnóstico de transtornos mentais. Sem, contudo se prenderem a uma música focada em transtornos mentais, é evidente que estes colapsos tão em voga na sociedade moderna circulam nos sintetizadores aliciantes que compõem a cassete. Se em “Into Nothing” os DSM-V arriscam numa veia contemplativa e ideia de um mundo relativamente estável, em “Function” a banda contrasta as harmonias com sintetizadores mais negros que repescam os traços estéticos da EBM, sem nunca descurar as paisagens contemplativas e de pura estabilidade. 
Em dois temas absolutamente cativantes, Buzz Kull e Morgan Wright manuseiam o seu estilo típico na criação de uma essência coerente que faz o ouvinte destilar entra as ondas negras e quentes, sem nunca perder o meio termo no ritmo. A aguardar o que estes meninos nos guardam para o futuro, que parece ser bastante promissor.
Sónia Felizardo



Pantayo | Telephone Explosion | maio de 2020 

7.5/10 

Kulintang é o nome de um instrumento composto por vários pequenos gongos dispostos horizontalmente. Estes são tipicamente acompanhados por diferentes tipos de gongos que são suspensos verticalmente e pelo dabakan, um tipo de tambor. Kulintang é também um estilo musical tocado com estes instrumentos que existe há séculos no sudeste da Ásia. Está presente em regiões da Indonésia, a Malásia e as Filipinas, entre outros países. É nas Filipinas que as Pantayo têm origem. São um quinteto feminino queer com sede em Toronto, Canadá, que mistura o kulintang tradicional com sonoridades mais modernas. 
Os gongos estão constantemente presentes ao longo de Pantayo e são origem de estranheza e complexidade, sejam eles o foco ou o suporte dos outros instrumentos. A sua inclusão nunca quebra o lado R&B e pop das canções, mas dá um sabor especial a cada uma delas: eleva a suavidade de “Divine” com jogos rítmicos entre diferentes tipos de gongos, enfatiza a urgência transmitida por “Taranta” e contrasta com os vocais melodiosos de “Eclipse”, por exemplo. 
O álbum demonstra uma vontade de experimentar, de abordar diferentes sonoridades. Por vezes isto é conseguido através de transições bruscas, ocorram estas entre faixas ou dentro de uma só, como em “Bahala Na”. Pantayo pode ser considerado um showcase das possibilidades do kulintang, mas há ideias que são trocadas por outras antes de serem completamente exploradas e a falta de resolução aí sentida é insatisfatória. 
Pantayo é uma união improvável que resulta num disco acessível, mas peculiar. Uma boa introdução ao kulintang para ouvintes que nada ou pouco conhecem desse estilo musical.
Rui Santos



The Mother Stone | Sacred Bones Records | maio de 2020

9.0/10 

É inevitável por vezes ficarmos com inveja do talento das outras pessoas. Especialmente, quando elas se excedessem em mais do que uma arte. Vem à cabeça, por exemplo, Donald Glover, que começou a carreira como ator (das excelentes séries Atlanta ou Community) e humorista de stand-up e que, como Childish Gambino, alter-ego musical, está na linha da frente dos mais inventivos rappers e músicos que usam o hip-hop como ferramenta para se exprimirem. 
A mais recente pessoa de quem tenho inveja é Caleb Landry Jones, ator de Garland, Texas, conhecido por ter entrado em filmes como Get Out ou Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (ambos os filmes foram, em 2018, nomeados a Melhor Filme do ano nos Óscares) ou na continuação da série Twin Peaks, em 2017, e que agora do nada se lança numa carreira a solo como músico. 
O excelente The Mother Stone, com selo da Sacred Bones Records, musicalmente, deve tanto aos delírios psicadélicos de Syd Barrett ou de Frank Zappa, como à orquestração instrumental eximia dos artistas que elevaram o chamber pop a um género na vanguarda como os Beach Boys no Pet Sounds ou, ainda, o trabalho de Kate Bush em Hounds of Love
Até ver, este disco, que soa como um musical produzido dentro de um circo, criado por Caleb é um dos melhores e mais frescos lançamentos dos últimos tempos e levanta a curiosa questão. Como irá Caleb conciliar a sua carreira de ator com a de músico. Esperamos que a resposta seja: bem.
Hugo Geada

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