Os melhores álbuns do 1º semestre de 2020

| Junho 28, 2020 9:18 pm
Bem… 2020 está a ser uma viagem inesperada, não está?

Janeiro quase trouxe uma terceira guerra mundial (não sei se ainda se lembram de quando os Estados Unidos atacaram bases do Iraque no início do ano) e os incêndios na Austrália que dizimaram hectares e inúmeras vidas humanas e animais (as imagens dos coalas queimados ainda nos arrepiam). A pandemia do Covid-19 lançou-nos para dentro das nossas casas, quer queiramos quer não, e a morte de George Floyd fez-nos sair para as ruas e protestar contra o racismo e a violência policial.

Sim, tem sido uma viagem inesperada e turbulenta, mas pelo menos a aparelhagem do meio de transporte tem estado munida de boa música. 

Enquanto muitos artistas decidiram adiar os lançamentos dos seus trabalhos, devido à impossibilidade de os apresentar ao vivo, outros aproveitaram para editar música, autênticas bandas sonoras para estes conturbados tempos que estamos a viver.

Na Threshold Magazine decidimos fazer uma lista, sem qualquer tipo de ordem, sobre os álbuns que mais nos marcaram no primeiro semestre deste ano e deixar-vos com esta eclética seleção, com um olhar sobre o melhor que se tem feito no nosso país e no resto do mundo.


R.A.P. FERREIRA – Purple Moonlight Pages | Ruby Yacht

O rapper Rory Ferreira conta aos 27 anos com uns quantos anos de pedalada nestas andanças, passando por pseudónimos como Milo e Scallops Hotel e contando com vários discos e mixtapes que demonstram uma evolução lenta, mas substancial, enquanto um dos artistas urbanos mais interessantes e genuínos do underground americano desta última década. Recentemente, este percurso viu um novo capítulo surgir com um novo alias chamado R.A.P. FERREIRA (sigla do nome completo de Rory), que traz também um novo registo chamado Purple Moonlight Pages. Ao longo das suas dezoito faixas, o álbum demonstra Rory em topo de forma, com uma fluidez impecável e smooth a transmitir a sua visão da sociedade que o rodeia, por via de letras que são tão próprias do artista, mas que neste caso, também refletem alguém com uma atitude mais refletida e madura. Com isto quer-se dizer que as letras se demonstram repletas observações pertinentes e abstracionismos desafiantes que denotam uma necessidade de apreciar e decifrar com calma. Para rematar este package, tem que se destacar também a produção de beats com sons lo-fi alucinantes e ritmos jazzy que caem que nem ginjas, cortesia do produtor Kenny Segal, um colaborador de longa data de Rory. Dá gosto ver o rapper de cara lavada e com uma confiança redobrada que se traduzem neste que pode ser um dos melhores álbuns do género nesta viragem de década.
Ruben Leite


Cátia Sá – Da Barriga | edição de autor

Da Barriga, o primeiro trabalho de Cátia Sá em nome próprio, nasce de um desejo de superação e da vontade da cantora escrever, compor, gravar e produzir o seu próprio disco. Para o efeito, a vocalista dos extintos Guta Naki serviu-se do material que tinha à mão e de um pequeno theremin que a própria construiu para elaborar preciosas canções de uma electrónica tropical e onírica. Introduzindo uma abordagem mais exploratória que nos projetos anteriores, Cátia Sá constrói um universo sedutor de samples e batidas fragmentadas, melodias luminosas e texturas atmosféricas que dão corpo a um trabalho que tem na voz o seu principal elemento. Esta é ouvida a espaços, limpa e graciosa em “Mareh”, metálica e processada em “Freirinha”, num misto entre a canção popular de B Fachada e a devoção espiritual de Eartheater. Em entrevista ao Rimas e Batidas, a cantora disse não reconhecer balizas, afirmando que lhe interessa tanto o trabalho de Laurie Anderson como de MC Carol, mas ao pretensiosismo da primeira e a luxúria da segunda junta-se o salmo melífero e irresistível de Cátia Sá, que tem em Da Barriga um delicioso tratado sobre os prazeres simples da vida.
Filipe Costa


Charli XCX – How I’m Feeling Now | Asylum

How I’m Feeling Now é um dos álbuns que define a primeira metade de 2020. Gravado e produzido em casa durante a quarentena do COVID-19, entre 6 de abril e 8 de maio, o álbum foi o resultado de um processo colaborativo entre Charli XCX, produtores, artistas visuais e a sua comunidade de fãs. Chamadas na aplicação Zoom e as redes sociais mais prevalentes foram o palco de uma troca de ideias entre a artista e os fãs. O desenvolvimento do projeto foi sendo desvendado em vídeos e textos partilhados no Instagram, Twitter e YouTube.
Musicalmente, o álbum é uma evolução da sonoridade que Charli tem vindo a apresentar ao longo dos últimos anos, entre o pop eletrónico alternativo e o bubblegum bass. A.G. Cook e BJ Burton são os produtores principais, envolvidos em quase todas as novas canções, que abrangem todo um leque de sonoridades. “Forever” opõe sons distorcidos a sons limpos de forma primorosa, suportando as melodias vocais e a letra sentimental; “Claws” possui uma sonoridade mecanizada e artificial criada por Dylan Brady (100 gecs), na qual sons metálicos ritmados incidem por entre as melodias digitais; “Pink Diamond” aproxima-se do grime e da música industrial da forma mais cool possível, enquanto “Visions” se transforma num épico trance dissonante a meio da sua duração.
O pop refinado de Charli XCX é cada vez mais dinâmico e detalhado, equilibrando perfeitamente acessibilidade e experimentação. Com um pé no presente e outro no futuro, How I’m Feeling Now é uma coleção de hinos para a geração da internet que nos farão dançar até 3020.
Rui Santos


Três Tristes Tigres – Mínima Luz | Branditmusic
Os Três Tristes Tigres criaram um legado através do seu feliz e descontraído pop-rock nos anos 90 (quem nunca tentou imitar a voz de Ana Deus na introdução à capela de “O Mundo a Meus Pés” que atire a primeira pedra), mas agora, mais de 20 anos depois do seu último disco de originais, a banda renasce.
Do casamento dos talentos da supracitada vocalista, Ana Deus, do guitarrista Alexandre Soares e da letrista Regina Guimarães, surge aquele que, provavelmente, será o seu mais ambicioso e experimental disco.
As canções abordam temas pesados, como o suicídio, mas são os instrumentais que verdadeiramente nos surpreendem com a utilização de loops, sample, guitarradas e paredes de som que fariam o Kevin Shields dos My Bloody Valentine corar.
Hugo Geada

Yves Tumor – Heaven to A Tortured Mind | Warp

Ao quinto longa-duração, Sean Bowie, isto é, Yves Tumor, abriu os manuais da música popular e, no seu jeito idiossincrático, confirmou o que já havia desvendado em parte com Safe In the Hands of Love: o músico americano é uma estrela de rock. Não uma estrela no sentido óbvio, é certo. A sua música continua igualmente estranha, sedutora, mas agora com uma renovada sensibilidade pop que lhe é cada vez mais natural. Heaven to a Tortured Mind, lançado novamente pela britânica Warp, é uma experiência carnal em onze andamentos onde o universo oblíquo dos primeiros lançamentos dá lugar à luxúria do glitter e dos casacos de cabedal, oferecendo um ângulo moderno e assumidamente glam dos cânones rock. Há guitarras (muitas), metais infernais e baixos esmagadores que projetam a sua imagem enigmática para os terrenos do divino, cantando hinos de libertação queer com o afinco e o carisma dos seus ídolos (encontram-se laivos de Prince, mas também de Genesis P-Orridge e dos seus Throbbing Gristle). Ou seja, há presente e passado no disco do americano, mas esse passado está diluído numa narrativa tortuosa que o americano usa a seu bel-prazer para desconstruir os lugares comuns da pop e do rock.
Filipe Costa

ATA OWWO + GUILLIO – Songs for Green Tea and Peppermint Pope | edição de autor

Henrik Ferrara e Guilherme Correia são ATA OWWO e GUILLIO, artistas que trabalham em música experimental e eletrónica que uniram esforços para a composição e gravação do seu álbum de estreia como dupla, Songs for Green Tea and Peppermint Pope. Este foi desenvolvido em fevereiro de 2019, durante quatro dias passados em retiro rural. O improviso e a experimentação deram origem a um conjunto de temas que atravessam territórios caóticos e calmos, mecânicos e orgânicos, eletrónicos e acústicos.
“Rico em Riscos de Ferrugem” e “Chá Frio/Chá Quente”, faixas de abertura, adivinham desde cedo as várias facetas do projeto. A primeira combina melodias robóticas sintetizadas a guitarras barulhentas e ritmos de bateria fluídos e dinâmicos, gerando um pandemónio musical de grande intensidade. A segunda apresenta um ambiente sonoro pormenorizado e suave, sobre o qual sintetizadores e flautas são tocados de forma hipnotizante, transportando-nos para uma floresta encantada de um mundo de fantasia. O resto do álbum continua a brincar com as nossas expetativas. “Meteoro em Lata 250g” cria uma atmosfera fria a lembrar Oneohtrix Point Never, “Erro IP2 Curto” e “A Caminho do Composto” são potentes explosões de texturas ruidosas, “Plástico Dançarino” poderia ser um ambiente opressivo de um filme distópico retro futurista e “Faixa de Faísca” é um momento de descanso e paz com melodias reconfortantes e o cantar de pássaros.
Songs for Green Tea and Peppermint Pope é a inevitável conclusão de um encontro entre músicos em consonância. É uma breve, mas forte explosão de criatividade e sabores que nos transportam para diferentes mundos e nunca nos deixam ficar confortáveis durante demasiado tempo.
Rui Santos

HATARI – Neyslutrans | Svikamylla ehf.

Os islandeses HATARI chegaram ao radar alternativo quando em 2019 tomaram a decisão de participar no festival Eurovisão da Canção. Por mais irónico que possa parecer é o cenário que melhor descreve o conceito deste projeto multimédia de BDSM anti-capitalista. A banda liderada por Klemens Nikulásson Hannigan, Matthías Tryggvi Haraldsson e Einar Hrafn Stefánsson tornou-se um fenómeno maior com o single “Hatrid Mun Sigra”, canção que colocava no radar mainstream a predominância do ódio e opressão num mundo aparentemente mais aberto. Os HATARI sempre jogaram em tons de ironia numa veia de profissionalismo extremamente evidente e, acima de tudo, brutalmente eclética. Em Neyslutrans o grupo mostra um produto de consumo que aporta uma mensagem fortemente vincada sobre os caminhos erróneos que a sociedade moderna continua a escolher. Ao longo de 13 temas que viajam entre o poder violento da EBM, o mundo pop palestiniano, o lado mais underground da música rap e a pureza da música clássica, os HATARI colocam em evidência toda a ironia que paira no mundo moderno e que predomina enraizada desde a base ao topo da pirâmide, tanto económica como social. Um disco que acima da música de presença forte aporta uma mensagem maior que pretende não só construir uma consciência coletiva, mas igualmente que essa consciência tome uma ação perante o problema. Neyslutrans é um abaixo-assinado ao extermínio dos atores opressores, capitalistas, fascistas e todos aqueles que provocam um desequilíbrio na dimensão humana. Produto de consumo obrigatório.
Sónia Felizardo
himalion – EGRESS – an introduction to himalion  | edição de autor

O músico de Aveiro Diogo Sarabando (que conta com colaborações com projetos como os The Lemon Lovers) lançou-se a solo no início deste ano sob a alcunha de himalion com o disco EGRESS – an introduction to himalion, tendo sido parte dos primeiros lançamentos da recém-formada label Chilli Pepper Fields. Neste demanda em nome próprio, Sarabando deixa a impressão de uma personalidade sonora muito própria, denotando uma inclinação para o indie folk etéreo e pastoral em partes iguais, que beberica da influência de nomes sonantes como Bob Dylan, Fleet Foxes, Crosby Stills & Nash e Sufjan Stevens e cujas temáticas englobam perspetivas e jornadas de introspeção e descoberta intrapessoal (com o seu quinhão de momentos mais esotéricos aqui e ali), refletindo o percurso de Sarabando até agora ao longo das oito faixas que compõem EGRESS. Os singles “Around the Mend” e “(海岸) Hour + Glass”, que demonstram uma tendência semi-ambient, são uns impressionantes vislumbres da direção sonora do jovem músico, igualmente ambiciosa e experimental mas sempre com uma acessibilidade invejável que caracteriza em pleno o seu primeiro registo. Um artista com grande potencial, a seguir de perto.
Ruben Leite

Lorenzo Senni – Scatto Matto | Warp

Depois de vários anos a explorar os terrenos mais desalinhados da música electrónica, com edições pela Boomkat e a Editions Mego, Lorenzo Senni estreou-se pela Warp com o seminal EP Persona, uma visão voyeurista e altamente contagiante da rave e da cultura que lhe corresponde.
Scatto Matto, o primeiro longa-duração de Senni pela label britânica, é um projeto menos ambicioso onde o maximalismo de Persona dá lugar a um minimalismo sintético, mas nem por isso menos eufórico. Tal como nesse EP, datado de 2016, o produtor italiano concentra toda a matéria temática num dos géneros musicais mais mal amados, o trance, que desconstrói em paisagens pontilhistas de arpeggios hipercinéticos, sem recurso às habituais drums e subgraves que sustentam grande parte das tendências da música electrónica de dança.
Parafraseando o seu single “The Shape of Trance To Come”, de 2017, que por sua vez empresta o seu título à obra quintessencial de Ornette Coleman, Scatto Matto (italiano para ‘xeque-mate’) é uma análise clínica do estado da música trance, retirando-a do contexto que a rodeia e reduzindo-a à sua estrutura sónica primitiva.
Filipe Costa

Evols – III | Revolve 

O novo álbum dos Evols é também o seu terceiro longa-duração. Com o título de III, o sucessor de II (2016) acrescenta mais alguns elementos ao trio originalmente formado por França Gomes, Carlos Lobo e Vítor Santos, juntando-se a estes Rafael Ferreira (Glockenwise), André Simão (Dear Telephone, Sensible Soccers) e Sérgio Bastos (S. Pedro, Space Ensemble), contando ainda com a participação de Jorge Queijo (Ensemble Gamelão, OtrotortO, Os Príncipes) e Pedro Oliveira (Krake, Peixe:Avião, Dear Telephone, OZO) durante a sua gravação. Em linha com o percurso traçado pelos Evols de revivalismo do rock dos 60/70, III continua essa viagem ao longo de uma dezena de temas que oscilam muito frequentemente entre o psych e o garage. Se faixas como “Color” e “White Lady” fazem lembrar uns Cream e uns Men, o tema “Old Town” tem qualquer coisa de Buffalo Springfield, além da declarada homenagem que faz a Allen Ginsberg. Mais explícita se torna a influência do poeta no grupo chegando ao quinto tema do disco, “Father Death”, no qual fazem uma cover da “Father Death Blues”, um tema que mereceu um videoclip lançado em 2017. Falando em videoclips, o single de III, “Cops”, é a segunda faixa do disco a merecer um versão videográfica, e assume-se como uma crítica à sociedade do consumo. Outro escritor homenageado no disco é Sam Shepard, co-autor dos guiões do Zabriskie Point e do Paris, Texas e também do tema “Brownsville Girl”, autor de dezenas de peças de teatro e do livro Motel Chronicles, no qual os Evols se inspiraram para a faixa “3h30am”. Conceptualmente, III encontra-se algures entre a homenagem revivalista, a crítica social e o escapismo, e propõe-nos uma viagem que pode tornar-se demasiado longa se não estivermos no espírito certo para a fazer. Por outro lado, se estiverem desencantados e quiserem re-descobrir o vosso amor pelo rock, este é um bom ponto de partida.
Edu Silva

Owen Pallett – Island | Domino

Island, foi assim que Owen Pallett se expressou e chegou até a nós em 2020, ano especialmente complicado, que nos vimos isolados do nosso quotidiano e nos tornámos “pequenas ilhas”. O terceiro registo em nome próprio do artista canadiano, quinto se tivermos em conta as edições sob o alias Final Fantasy, surgiu nas plataformas digitais sem qualquer aviso prévio e reúne 13 temas originais (mais 2 versões alternativas de temas incluídos no disco), sucedendo a In Conflict (2014).
O lado cinemático e teatral dos trabalhos anteriores deu lugar à expansividade e a momentos mais contemplativos, proporcionados pela música de câmara e orquestral – gravado nos Abbey Road Studios com a London Contemporary Orchestra -, explorando também com a guitarra acústica as influências do American Primitivism, sem nunca descurar a típica ambiência sombria e etérea promovida pelos arranjos de cordas, tão típicos nas músicas de Owen, produzidas com o primor habitual.
Temas como “Paragon of Order”, “A Bloody Morning”, “Fire-Mare” e “Lewis Gets Fucked Into Space” são um bom resumo da identidade deste Island, um dos melhores registos deste semestre atribulado. 
Rui Gameiro
Caleb Landry Jones – The Mother Stone | Sacred Bones Record

Uma das grandes surpresas de 2020 foi descobrir que Caleb, o homem de Garland, Texaspara além do talento para a representação – participou em filmes como Get Out ou Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (ambos nomeados a Melhor Filme do ano nos Óscares, em 2018) ou na continuação da série Twin Peaks, em 2017-, é também um músico excelente.
The Mother Stone, o seu primeiro lançamento musical oficial, deve tanto aos delírios psicadélicos de Syd Barrett ou de Frank Zappa, como à orquestração instrumental exímia dos artistas que elevaram o chamber pop a um género na vanguarda como os Beach Boys no Pet Sounds ou, ainda, o trabalho de Kate Bush em Hounds of Love
Até ver, este disco, que soa como um musical produzido dentro de um circo, criado por Caleb, é um dos melhores e mais frescos lançamentos dos últimos tempos e levanta a curiosa questão: Como irá Caleb conciliar a sua carreira de ator com a de músico? Esperamos que a resposta seja: bem.
Hugo Geada

Filipe Sambado – Revezo | Valentim de Carvalho

Temos em Portugal um património imaterial e sonoro consideravelmente grande – cantes polifónicos, fado, folclore ou, simplesmente, música popular portuguesa, constituem uma boa parte daquilo em que pensamos quando ouvimos falar em “música portuguesa”. No entanto, é inegável que muito disso existe parado no tempo; grande parte dos ecos dos temas tradicionais que escutamos continuam a não se afastar em demasia daquilo que inicialmente os constitui. Felizmente, há álbuns como Revezo de Filipe Sambado, que se atrevem a recriar o tradicional em algo que é verdadeiramente novo. A presença destas visões do passado é evidente – desde a utilização de instrumentos ou sons tradicionais ao longo de todo o álbum até a canções que capturam não só a sonoridade mas também os temas líricos que reconhecemos na música popular portuguesa (alguns exemplos disto podem ser ouvidos em “Gerbera Amarela do Sul”, que Sambado levou ao Festival da Canção, “Mais Uma” e “Bitola”). No entanto, o músico lisboeta usa estes tradicionalismos sem ser usado por eles: seja em cabedal no Festival da Canção ou em trajes tradicionais tipicamente femininos no teledisco de “Jóia da Rotina”, Filipe Sambado desconstrói o que é esperado de um artista masculino em Portugal, usando a expressão associada à tradição, conquistando espaço para comunidades que não existem tão livremente dentro do universo português, algo sobre o qual fala em entrevista à Threshold Magazine.
José Guilherme de Almeida

CRONIES – An Evening With Saints | edição de autor

An Evening With Saints é o disco de estreia dos CRONIES, uma banda nova-iorquina da qual não existe informação nenhuma na rede, excepto aquela disponível no seu bandcamp. Compostos por sammy pishadeel e jacky tinges, as faixas deste disco foram integralmente compostas pela dupla Sam e Jack Carillo, contando ainda a banda com a participação de Brad Hoyt e Cody Philips e com a masterização de Sasha Stroud.
Tudo ilustres desconhecidos, mas a julgar pelo disco, espero que não por muito tempo. “Borealis” é uma balada pós-grunge puramente instrumental que começa com uma homenagem ao clássico do gore Cannibal Holocaust – “In the jungle, nothing goes to waste. Nature recycles everything” –  a lembrar um instrumental de uns Drenge ou de uns Unsane. “Big Order Faith” é um tema para dançar sobre o afastamento irracional em relação ao outro – ”My Life’s the same as yours | Why can’t we live together? WAGE WARS WAGE WARS WAGE WARS” – com uma aproximação à estética sonora de uns Jesus Lizard ou de uns Drive Like Jehu. O terceiro tema, “Acid Western From The Heart” faz-me lembrar algo saído da fase mais explosiva dos Jane’s Addiction e fala daquela escuridão que, metaforicamente ou literalmente, por vezes nos assola a todos: “ The circle comes in | Now I’ve seen | The darkness over here”. O disco encerra com outra balada instrumental, “I Don’t Mean To Be The Slave Driver”. Falando do elefante na sala, An Evening With Saints é um disco curto. Soma quatro faixas e tem a duração total de 12’25’’. E sendo que nada se sabe sobre os CRONIES à data desta crítica, é possível estarmos perante um caso de um one-hit wonder: lançam um disco em pleno dia de São João/desaparecem do mapa no dia seguinte. Dito isso, An Evening With Saints é um disco coeso, bem estruturado, que irá agradar a fãs de grunge e pós-hardcore. Por isso mesmo, galgou directamente para o meu top de discos do ano. Curto e grosso.
Edu Silva

Emma Acs – While I Shoot from My Fortress of Delusions EP | Third Coming Records

Já estávamos nos meses finais de 2019 quando Emma Acs colocou na calha um tema profundamente ornamentado de texturas pop, “My Beloved (Lost to Begin With)” enquanto anunciava a sua junção ao rooster da Third Coming Records. Num tema apaixonado a envolver ambiências dos 60’s a uma veia clássica de inspirações modernas, Emma Acs preparava-se para conquistar o coração dos ouvintes com While I Shoot from My Fortress of Delusions, o primeiro trabalho de estúdio em cinco anos. Através de sete canções que se poderiam situar num período renascentista – a envolverem um lado mais sombrio, polido, experimental e absolutamente brilhante – Emma Acs apresenta uma melancolia inerte feita para nos envolver e apaixonar. While I Shoot from My Fortress of Delusions é um disco sobre o amor moderno construído em camadas experimentais, que consegue viajar entre vários períodos marcantes da música sem descurar da estética moderna que inevitavelmente o envolve. Eclético desde os segundos iniciais até aos de despedida, While I Shoot from My Fortress of Delusions veste a pele de edição arrojada e marcante do ano, a mostrar com segurança que Emma Acs é, sem margem para dúvidas, a nova musa dos anos 20. Um EP efervescente e altamente belo, sem dúvida necessário na coleção de discos.
Sónia Felizardo 
Dada Garbeck – The Ever Coming Part II – Vox Humana | Discos de Platão

Rui Souza, pianista, organista e compositor oriundo de Guimarães, é o mentor por detrás de Dada Garbeck, projeto que recorre apenas ao órgão e ao sintetizador, onde a música serve como ponto de reflexão sobre a teoria do eterno retorno e a dimensão não linear do tempo, partindo na busca pela transcendência.  
The Ever Coming, tetralogia da autoria de Rui Souza, teve este ano direito a um segundo capítulo editado pela Discos de Platão, Vox Humana, o qual, como o título indica, se foca na voz humana e na sua utilização musical como sintetizador. Vox Humana dá continuidade ao primeiro capítulo de The Ever Coming, iniciando com a mesma matriz sonora que finaliza esse primeiro capítulo e, curiosamente, com a segunda parte do tema “This Is Not Misanthropy”.
A experimentação eletrónica do primeiro trabalho editado no ano passado dá lugar à introspeção catártica, reunindo sete temas sintéticos embebidos em sonoridades neoclássicas e minimais, num registo em que a voz e o cariz tradicional e erudito das canções ganham uma nova importância, especialmente em “Kali Yuga PT II”, “Alerta” e “Canto de ordeño y tomada de luna”, que conta com a participação vocal de Arianna Casellas.
Rui Gameiro
Rina Sawayama – Sawayama | Dirty Hit

Natural de Niigata no Japão, Rina Sawayama cresceu e estudou no Reino Unido. É talvez esta variação tão demarcada de ambientes que acaba por informar a sua música – Sawayama é uma combinação de pop contagiante, metal alternativo, hip-hop e wonky reminescente dos tempos idos dos anos 90 e 2000, conseguindo capturar os aspectos bons de Limp Bizkit e Avril Lavigne com um filtro orelhudo e moderno. Ao longo do álbum a artista nipo-britânica cria momentos dramaticamente diferentes que complementam a produção de Clarence Clarity. Enquanto que guitarras marcam fortemente faixas como “STFU!”, um pleno hino de metal alternativo/pop vanguardista, as batidas wonky e imprevisíveis combinam-se com chiptune e hip hop em “Akasaka Sad”, um dos destaques do álbum. Vagueamos alegremente perdidos por este mundo que nos traz ainda “Comme Des Garçons (Like the Boys)” e “Paradisin’”, temas agressivamente pop que recriam a razão da nostalgia pelos anos 2000, ou “Snakeskin”, com um R&B frontal, violento e desespeardo. Em termos líricos, o álbum de estreia de Rina Sawayama captura um sentimento de desespero perante um capitalismo agressivo e machista, perante a dificuldade em escapá-lo sem participar ativamente nele e em como ela própria vive nessa e dessa contradição. Sawayama, apesar dos seus excessos pop desavergonhados é um álbum que combina brilhantemente uma diversidade quase interminável de referências dos últimos 30 anos, desde a sua sonoridade contagiante ou guitarras agressivas até ao desespero da existência moderna.
José Guilherme de Almeida

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