Cinco Discos, Cinco Críticas #58

| Julho 8, 2020 12:00 am


Já com o segundo semestre de 2020 em voga e, apesar de já termos avançado com os nosso preferidos do primeiro semestre (neste artigo), à 58ª edição do Cinco Discos, Cinco Críticas fomos buscar ao baú mais cinco edições que até então não tinham visto a luz no nosso posto de escuta.

Falamos assim da dupla franco-russa Otchim que lançou cá para fora o disco de estreia Club Souvenirs (Sierpien Records); prosseguimos para territórios australianos com o projeto de Xandra Metcalfe, intitulado Uboa onde podemos encontrar sensações multifacetadas no dinâmico The Flesh Of The World (edição de autor). Numa colaboração entre a Bélgica e o Haiti somos projetados para um ritual de voodoo no disco Vodou Alé (Bongo Joe) resultado da junção entre Chouk Bwa e os The Ångstromers; ainda na Bélgica e agora e colaboração com a Escócia abrandamos o ritmo com a edição do single duplo dos The Original Magnetic Light Parade: Confusion Reigns/Smoke & Mirrors (Bearsuit Records); e, para finalizar esta diligente viagem pelo mundo underground consumimos Teletransportar, o novo esforço do brasileiro Rafa Castro.

Os respetivos discos – que podem escutar-se na íntegra abaixo – encontram-se acompanhados pelas respetivas opiniões, as quais podem ser lidas nos próximos parágrafos.



Club SouvenirsSierpien Records |  maio de 2020

8.0/10 

Depois do EP de estreia James Dean (2019, Detriti Records) a dupla franco-russa Otchim está de regresso aos holofotes com o disco de estreia Club Souvenirs que os coloca no radar dos novos atos de ondas sintetizadas a rodar no posto de escuta. Sem nunca terem presenciado o mesmo espaço físico Anton Berezin (Wolfsteam/Семь Ножей) e Jordi Sorder (Order89) tiveram o fortúnio de cruzar caminhos quando os seus projetos paralelos lançaram um single pela editora alemã Ombra International. Depois de descobrir a voz de Jordi Sorder, Anton Berezin considerou que esta encaixava nos arranjos musicais que tinha composto e, após um período de experimentação, nasceram os Otchim
Club Souvenirs, o disco que marca a estreia da dupla nos longa-duração repesca os quatro temas originais que incorporaram o EP de estreia e junta-lhe mais quatro faixas extremamente aditivas com os BPM’s ora acelerados ora monocromáticos de compassos lentos. Se tinham efetivamente escapado dos holofotes da imprensa à primeira vez, à segunda não se deixam escapar e ainda nos deixam tomar o gosto daquilo a que, até então, estávamos alheios. A abrir álbum com o hino “James Dean” os Otchim vão buscar o lado mais divertido dos sintetizadores e incorporam-lhe uma mancha depressiva transmitida através dos vocais graves e de presença forte que o cantor francês faz ecoar. Apesar disso Club Souvenirs apresenta-se como um álbum extremamente dinâmico onde a darkwave, o sytnhpunk e o post-punk russo criam uma harmonia concisa sem cair na monotonia. 
De Club Souvenirs além da gabada “James Dean”, podemos encontrar em temas como “Blanc”, “Danser”, “Traverser” ou “Ma Brune”, um convite inegável a uma dança cadavérica sem deixar de bater pé. Se os melómanos da darkwave apanham isto na playlist temos aqui um projeto com potencial para chamar a atenção dos festivais underground Europa fora. Divertido, dinâmico, nostálgico e pronto para se fazer ouvir bem alto.
Sónia Felizardo



The Flesh of the World | edição de autor | maio de 2020 

8.7/10 

Uboa é o nome artístico de Xandra Metcalfe, artista australiana que aborda uma grande variedade de géneros musicais, desde o noise à música ambiente, passando pelo metal e o industrial. The Flesh of the World, gravado durante a quarentena do COVID-19, é um EP que junta quatro músicas, todas elas marcadas por uma atmosfera fria e sombria dominada por sintetizadores. 
“Exsanguination”, a primeira faixa, serve de introdução ao EP. Convida-nos a entrar num ambiente etéreo e soturno onde a voz de Metcalfe flutua sobre texturas que se transformam lentamente. As restantes faixas estão, pelo contrário, repletas de dinâmicas acentuadas. As mudanças de intensidade em “Inside/Outside” e “God Unbounded” são notáveis, com as secções mais serenas a dar azo a crescendos arrebatadores que culminam em momentos catárticos e sufocantes, após os quais há uma nova redução de energia. A junção de vocais arranhados a ruídos distorcidos esmagadores é violenta e poderosa. 
The Flesh of the World é extremamente consistente e todas as suas partes encaixam bem umas nas outras, mas peca por terminar abruptamente, quebrando a sua atmosfera escura de forma demasiado brusca. No entanto, o seu final anticlimático não o impede de ser um EP altamente recomendável para os fãs de sonoridades mais frias e agressivas. Um dos lançamentos essenciais de 2020, The Flesh of the World é uma angustiante banda sonora para o apocalipse.
Rui Santos



Vodou Alé | Bongo Joe | maio de 2020

8.0/10 

Vais fazer um ritual voodoo no meio da floresta com os teus amigos e não sabes que banda sonora utilizar? 
Não te preocupes, temos a solução. Ou melhor, uma excelente sugestão. O sexteto de música tradicional haitiaa, Chouk Bwa, e o duo de dub de Bruxelas, The Ångstromers, uniram esforços para criar um dos mais curiosos energéticos álbuns do ano, Vodou Alé
Com influências de ritmos (uma parte importante do som, a banda conta com uma secção rítmica formada por três músicos), danças e cânticos de voodoo, neste disco, a música tradicional do Haiti funde-se com sintetizadores, que adornam a música com camadas e texturas futuristas, e, juntamente com as vozes de Jean Claude “Sambaton” Dorvil, Maloune Prévaly e Edèle “Sasufi” Joseph (estas últimas formam os coros), criam uma música que transcende géneros e épocas históricas. 
As nove faixas que formam este disco tão rapidamente podem acordar uma veia curiosa no ouvinte, deixando-o a interrogar-se e a apreciar esta fusão de sons tão pouco convencionais, como a ignorar tudo o que está a tentar absorber e a entregar-se completamente à dança.
Hugo Geada




Confusion Reigns/ Smoke & Mirrors | Bearsuit Records | junho de 2020 

7.0/10 

O compositor e produtor belga Alexander Stordiau e o músico escocês Harold Nono juntaram-se para criar o projeto The Original Magnetic Light Parade que agora juntou forças com a editora escocesa Bearsuit Records para lançar um single duplo. 
Numa viagem 100% instrumental em modo experimento sonoro, os músicos começam por desenvolver o seu ambiente magistral entre as entrelinhas de uma banda sonora tão clássica como de ficção científica em “Confusion Reigns”. Com início marcado pelas camadas densas da música eletrónica experimental, rapidamente os The Original Magnetic Light Parade colocam-nos numa mesa cirúrgica caracterizada por um ambiente de ora celestial, ora sinistro e ainda assim envolvido pelas paisagens mais puras da música clássica. Entre um desenvolvimento que ganha curso nas artimanhas da música folk é mesmo no fim – promovido pelo carácter futurista dos sintetizadores que “Confusion Reigns” veste a pele de tema intenso e vigoroso. Para virar a página os músicos finalizam o duplo single com “Smoke & Mirrors”, tema de camadas vinculadas à folk e influenciado pelos traços experimentais da música ambiente, o que funciona como uma viagem imersiva a um estado de consciência plena. 
Em dois temas de certo modo antagónicos, os The Original Magnetic Light Parade conseguem criar uma certa coerência estética que, embora não tenha sido produzida para fazer bombar as pistas de dança, foi criada para poder deixar uma sensação de paixão em quem a escuta. Ora atentem:
Sónia Felizardo




Teletransportar | edição de autor | abril de 2020

8.5/10



Rafa Castro é um compositor, pianista e cantor nascido em Minas Gerais, com formação musical na Universidade de Música Popular Bituca, algo notório nos seus primeiros trabalhos de índole instrumental e jazzística  – Teias (2014) e Casulo (2016). Sediado atualmente em São Paulo, foi com Fronteira, disco de 2017, que Rafa começou a introduzir nas suas canções, ao de leve, uma estrutura mais maleável, mais pop, recorrendo também à sua voz, sem descurar da identidade clássica. 
Passados três anos após o lançamento de Fronteira, Rafa persistiu na exploração da sua veia de compositor, influenciado pela obras de Adélia Prado, João Guimarães Rosa e por cancioneiros mineiros, tendo escrito 9 das 10 faixas que fazem parte de Teletransportar, quarto registo discográfico do artista editado este ano. O disco inicia-se de forma expansiva com o tema título a mimicar a energia melódica e exuberante de uns Fleet Foxes. Seguem-se um conjunto de temas em que há uma vontade incessante de se ligar à natureza – a água, em todas as suas formas e percursos, é a essência de Teletransportar -, vontade essa inspirada pelas viagens do artista pelo sertão brasileiro. Teletransportar releva-se como o registo mais pessoal do artista até à data, um modo de partilhar as experiências espirituais e de se conectar com os outros, não fugindo às inevitáveis questões políticas que fraccionam o Brasil. 
Em suma, Teletransportar trata-se de um disco tranquilo e veranil, muito bem executado e produzido, que nos permite refugiar numa outra realidade, ideal para fãs das sonoridades de artistas como Arthur Verocai e Tim Bernardes.

Rui Gameiro





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