Bernardo Devlin em entrevista: “Sinto que o álbum tem um mistério próprio e que me transcende”

Bernardo Devlin em entrevista: “Sinto que o álbum tem um mistério próprio e que me transcende”

| Fevereiro 9, 2021 2:57 am

Bernardo Devlin em entrevista: “Sinto que o álbum tem um mistério próprio e que me transcende”

| Fevereiro 9, 2021 2:57 am

© Raúl Cruz 
“Sem querer exacerbar a minha interpretação enquanto autor, parece-me claro que reflecte o tópico da consciência duma dimensão cósmica e da sua infinita (no que isso possa querer significar) proporção perante a realidade terrestre e humana, confinada a um minúsculo e muito singular ponto no espaço (o nosso planeta) – sujeito como está aos desígnios caprichosos dum jogo muito privado e exclusivo, no qual uma ridiculamente minúscula minoria impõe o que considera ser seu direito, um permanentemente crescente acumular de riqueza e direitos, e pelo qual se recusa a olhar para as nefastas consequências ambientais e sociais, as quais são gritantes e por demais óbvias (e que em último recurso serão igualmente devastadoras para essa mesma elite de “jogadores”).

Não é ficção-científica. Não é um tema fácil. Não é um mundo fácil. Mas é também certo que a qualquer momento (e duma ou de outra forma) esse jogo terá um fim, assim como tudo tem um fim. E que para além da vertigem em vigência e da sociopatia encorajada também existem porções de beleza aos olhos de quem souber ver. Uma longa distância até à velocidade da luz. Um lento caminho para a evolução duma espécie que na sua interna rota de colisão se arrisca a nunca lá chegar”
Bernardo Devlin, a propósito de proxima b.

Capa de próxima b

Bernardo Devlin, é um músico português, criador de bandas sonoras na verdadeira acepção da palavra, co-fundador do projecto de música improvisada Osso Exótico, e é conhecido por aqui, como mais um talento da nossa música portuguesa. Músico que colaborou com nomes sonantes, pela sua criatividade e genialidade: Sei Miguel, Vítor Rua, por exemplo. Bernardo Devlin, que nesta altura vai no seu sexto álbum de originais, em nome próprio: proxima b, e que tem como subtítulo As duas antenas do caracol. Vamos então conhecê-lo e saber um pouco mais sobre o que não se fala mundanamente por aí.

Antes de mais, quero perguntar-te sobre as estórias que fazem a tua história aos dias de hoje. Provavelmente, tens muitas para contar. Começo com a relação que primariamente tiveste com o som: qual é a primeira memória que queres partilhar connosco?

Bernardo Devlin (BD) – Com alguma falta de humildade, posso dizer que sempre tive o ouvido apurado e como tal reagia ao som, fosse qual fosse a proveniência. É-me impossível considerar uma cronologia, mas uma experiência sónica que nunca vou esquecer foi ter visto repetidamente o Concorde a aterrar no aeroporto de Santa Maria nos Açores. Passei lá um verão quando era puto e o Concorde fazia lá escala de abastecimento, penso que com destino a Caracas. Isso e as manobras de terra até estacionar. A pista de aterragem era enorme, mas o aeroporto era diminuto e não havia nem as barreiras nem o nível de segurança que há hoje, por isso ele passava mesmo muito perto de nós e o som era absolutamente descomunal. Isto para não falar do impacto visual.

Nessa altura, já pensavas que um dia serias tu a fazer os teus próprios “ruídos” numa escala mais “organizada”?

BD – Conscientemente, não. Mas se me aparecesse um piano à frente experimentava-o.

Conta-nos como foi da primeira vez em que realmente tiveste essa consciência e oportunidade de começar a fazer a tua música. 

BD – Eu andei na António Arroio e na altura gerou-se uma cena com várias bandas e projectos. Não sei como é agora, mas era muito interessante. Independentemente dos estilos, se havia algo em comum era uma procura por um universo próprio, o não-repetir o que já havia. Claro que eram repercussões dum determinado período a que hoje se chama o pós-punk.

Considerando o nível de proliferação de novas atitudes e abordagens que apareceram na música pop dessa época foi um enorme golpe de sorte ter vivido isso em tempo-real. Numa semana tinhas os The Fall, noutra os Pere Ubu, noutra os The Gun Club, ou os The Flying Lizards, ou os The Lounge Lizards, etc

De que forma esses artistas te influenciam ainda, estando agora tu no teu sexto disco, e em contrapartida como vês o actual panorama da criação musical? 

BD – Eles influenciaram numa perspectiva em que a ênfase é dada ao todo, à soma das várias peças, e não a uma abordagem mais tecnicista e individualista.

Quanto à actualidade, estou certo que existem coisas interessantes, e sei que existem, mas o mais comum é não terem impacto o suficiente em termos de público, o que é uma pena. Do meu ponto de vista, a música ocupa uma posição muito diferente na mente das pessoas. E com o permanente feed de acontecimentos e informação não é de admirar…

 ©Raul Cruz 

Escutando as letras, que relação têm elas com o mundo (real, surreal, cinematográfico)? Por exemplo, ouvi dizer que Luis Buñuel está entre as tuas preferências/influências, no que toca à poesia das tuas canções.

BD – Buñuel está certamente nas minhas preferências. Mas isso não faz com que eu queira referenciá-lo ipsis verbis, nem me sentiria nada confortável com isso. Mas há aspectos, e não são só de agora. Por exemplo, em 1997 gravámos um álbum chamado Albedo numa igreja dessecrada, por razões de acústica. Não era de todo a minha ideia gravá-lo numa igreja porque não queria a conotação. No entanto, a memória da sessão é “buñuelesca”, foi uma directa a tocar aqueles temas estranhos, com músicos a adormecer literalmente, por vezes a meio dos takes, litros de álcool e uma nuvem de fumo que deve ter contribuído bem para o buraco na camada de ozono. O que resultou em termos de álbum foi um artefato sonoro um pouco deficiente, mas que ainda tem hipótese de ser restaurado – o que faz parte dos meus planos.

No caso do proxima b, há o facto de o presente estado deste mundo se fazer sentir de uma forma mais incisiva. Mas no seu todo, sinto que o álbum tem um mistério próprio e que me transcende. E gosto da sensação.

A música como o alimento do corpo e da alma, concordas?

BD – Como forma de magia. Uma coisa imaterial que mexe connosco.

Que depois ganha formato físico e digital. proxima b, b de Bernardo? Este teu novo disco tem também o subtítulo de As duas antenas do Caracol

BD – Sim. Tem a ver com distância, lentidão e observação.

Onde podemos encontrar e adquirir o proxima b

BD – Para já, no Bandcamp, na Flur, na Peekaboo, na Louie Louie e na Vinyl Experience.


proxima b são oito bonitas canções, com letras que conduzem a uma introspecção subliminar, numa conversa interior, entre o sentir e o reflectir, sob uma camada sonora intensa, numa toada que lembra o Fado, mas que também nos leva a pensar em Stuart Staples (Tindersticks), Leonard Cohen, Scott Walker, ou a Nico. Há um precioso elenco sónico a acompanhar o artista que produz o seu próprio disco. proxima b tem co-produção e processamento de Nuno Tempero, com Ernesto Rodrigues (viola), Helena Espvall (violoncelo), Oliver Vogt (saxofone tenor) Luisa Gonçalves (celesta); Carlos Andrade, Nuno Leão e Pedro Ferreira (guitarras), Gonçalo Castro e João Milagre (baixos), João Vairinhos e António Forte (percussão). 

António Forte que conhecemos também como realizador no Pop Off, ou em 86-60-86, vídeos dos Mão Morta e muitos outros, também assina “meio-dia”, o video que acompanha o single de antecipação ao novo disco de Bernardo Devlin.

Entrevista por: Lucinda Sebastião

FacebookTwitter