MIL 2021: A luz cultural ao fundo do túnel pandémico

MIL 2021: A luz cultural ao fundo do túnel pandémico

| Outubro 3, 2021 12:06 am
MIL 2021

MIL 2021: A luz cultural ao fundo do túnel pandémico

| Outubro 3, 2021 12:06 am

No passado dia 15 de setembro estivemos presentes no dia inaugural do MIL – Lisbon International Music Network, festival que se realizou este ano no Hub Criativo do Beato. Depois de dois anos bastante duros para todo o ramo da cultura, em que o MIL se cingiu apenas a atividades de cariz digital, 2021 veio proporcionar um regresso ao formato presencial do festival. A aposta recaiu uma vez mais em duas frentes a que o evento nos habituou nas suas edições anteriores: de manhã decorreram os debates, keynotes, masterclasses e workshops; e da parte da tarde iniciou-se a programação artística, que promoveu mais de 50 atuações, que se estenderam pela noite adentro, num espaço que outrora pertenceu ao Exército Português, onde se fabricavam todo um conjunto de géneros alimentícios, que incluiam farinhas, massas, pão e cereais.

A edição deste ano assumiu uma maior importância face às anteriores. Tratou-se de um enorme passo no que concerne o vivenciar da normalidade, de nos cruzarmos em áreas de acesso comum com centenas de melómanos entusiasmados, amigos com quem queremos beber uns finos e meter as conversas em dias. Isto tudo sonorizado principalmente pelas atuações que decorriam no Palco da Casa do Capitão e se podiam escutar um pouco por todo o recinto.

Além da Casa do Capitão, as atuações dividiram-se por mais 4 palcos no Hub Criativo do Beato: Fábrica do Pão, Fornos da Fábrica do Pão, Palco Beato e Factory, todos eles muito bem preparados para receber os espetadores.

Após exibirmos o certificado de vacinação (o nosso novo melhor amigo para ocasiões em que queremos ser sociais) entrámos no recinto já Tristany estava prestes a terminar o seu concerto. Não conhecendo o Hub Creativo do Beato, começámos a explorá-lo e demos por nós à entrado do Palco Factory onde se podia ouvir o groove de Cabrita. Depois de subirmos a muito custo uns 4 ou 5 lances de escadas, a organização indicou-nos uns lugares livres onde nos poderíamos sentar.

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João Cabrita é um saxofonista lisboeta que lançou no ano passado o seu primeiro registo em nome próprio, com o selo da Omnichord Records. Dono de uma carreira com mais de três décadas, alicerçada em colaborações com artistas como Sérgio Godinho, Orelha Negra, Caetano Veloso, e ainda passagens por grupos como Dead Combo, Cais Sodré Funk Connection ou Sitiados, Cabrita apresentou-se em palco em formato trio. A bateria implacável e os ritmos exultantes de guitarra eram obviamente conduzidos pelas notas saídas do saxofone de Cabrita, que pareciam também contagiar todos os presentes, agarrados às suas cadeiras, mas com uma grande ânsia de se poderem “libertar”. É assim mesmo a música de Cabrita, daquela que precisa de sair de estúdio e ser experienciada ao vivo.

Seguimos então para o palco Fornos da Fábrica do Pão, para podermos assistir à performance de Dianna Excel, artista que lançou em março o seu registo de estreia, XL, espaço seguro de análise e reflexão da vida de uma mulher trans e da sua jornada de transição hormonal. Infelizmente, a lotação do espaço já se encontrava preenchida, daí apressarmo-nos rapidamente para a Casa do Capitão para ver se não perdíamos mais um concerto, neste caso, o de Bia Maria. Foi ao som de uma belíssima rendição de “Oliveirinha da Serra”, tema da autoria de Amália Rodrigues, que Bia Maria iniciou o seu concerto. A cantautora oriunda de Ourém brindou-nos com “Alecrim” e “Ó Rama, Ó Que Linda Rama”, temas de Tradição, disco editado no final do ano passado que celebram docemente o cancioneiro popular. Entre músicas tristes e sambas, ficámos a conhecer a sua receita de brócolos com queijo (que envolve uma grande dose de queijo), momentos antes de Bia interpretar um tema de mesmo nome.

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Após assistirmos a Bia Maria na Casa do Capitão, deslocámo-nos até ao palco Factory para absorver o psicadelismo dos Gala Drop. O ambiente na sala era bastante agradável e vibrante, embora a vontade de dançar tenha sido abafada pelos lugares sentados. Foram 45 minutos de puro êxtase, compostos por batidas e sintetizadores capazes de nos fazer fechar os olhos para sermos levados numa viagem espacial. No final, as pessoas que conseguiram entrar neste concerto aplaudiram intensamente a prestação da banda lisboeta, num serão de onde saíram certamente satisfeitas.

Seguimos de volta para a Casa do Capitão, onde aproveitámos para fazer uma pausa e comer qualquer coisa. Às 21h15 em ponto, Maria Reis subiu ao palco desta ‘venue-restaurante’ para nos apresentar A Flor da Urtiga, EP que foi editado em abril com produção de Noah Lennox (Panda Bear; Animal Collective). Acompanhada apenas por uma guitarra acústica, a artista lisboeta inundou o Beato com belíssimas melodias de pop experimental, mostrando claramente as influências que teve de Panda Bear na produção do último registo. O público estava meio dividido, uns comiam a sua refeição enquanto socializavam alegremente, outros prestavam mais atenção à música. Mas decerto que todos saíram daqui com a alma saciada, e talvez também o estômago.

Foi no Palco da Fábrica do Pão a que tivemos o privilégio de assistir ao concerto colaborativo de Lavoisier com as espanholas Tarta Relena. Os dois conjuntos levaram a cabo uma residência artística nos dias que antecederam o MIL, e tinha chegado finalmente a altura de apresentarem ao público o fruto desta parceria. Os Lavoisier, dupla formada por Patrícia Relvas e Roberto Afonso, destacam-se essencialmente na revisitação e exploração de música portuguesa de índole tradicional. À guitarra, de caminhos enigmáticos e sinceros, tocada por Roberto, e à voz exímia e primorosa de Patrícia, carregada de emoção, juntaram-se os teclados e a eletrónica contextual de Tarta Relena. Ao longo de 40 minutos foram interpretados temas de ambos os pares, tendo a atuação terminado com um tema do duo espanhol, ritmado com a ajuda de palmas ao estilo flamenco, mas de andamento mais suave. É sempre um prazer enorme podermos ver e ouvir os Lavoisier e esta passagem pelo MIL não fugiu à regra, como se pôde testemunhar pelas vibrações extáticas do público no final.

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Já com algum cansaço nas pernas, fomos até ao Palco Beato conhecer os Ladaniva, banda da Arménia que se apresentou ao vivo com 7 elementos em palco. Liderados pela vocalista Jacqueline Baghdasaryan, os Ladaniva são aquela banda arquétipo de celebração da vida, presença ideal num festival de músicas do mundo. As suas melodias são cantadas em arménio mas percorrem muitas outras culturas, bebendo de influências tradicionais africanas, árabes, balcânicas, entre outras. Sonoridades como reggae, dub e folk arménio escutaram-se neste espaço ao ar livre e animaram o público presente, que nem mesmo sentado, se inibiu de dançar e acompanhar a banda com palmas e gritos de entusiasmo.

Da euforia passámos à negritude. Foi assim a breve incursão pelo concerto dos Stereoboy no Palco Factory. Formado pelo mentor Luís Salgado, apresentam-se ao vivo em formato trio, com a participão de João Pimenta (10 000 Russos) na bateria e José Marrucho na percussão. Consigo trouxeram Kung Fu, disco editado no ano passado, forjado de uma eletrónica de texturas minimais e industriais, ambiências “krauturais” e densas, exacerbados pelo peso da batida compassada

Coube ao dominicano Kelman Duran encerrar as festividades do primeiro dia do MIL. Foi no Palco da Fábrica do Pão que se fizeram primeiro soar ritmos latinos e africanos, acompanhados por uma batida exageradamente grave. O set do produtor não obedeceu a uma sequência lógica de acontecimentos, num momento adornava faixas com filtros, delays e ecos, e no minuto seguinte, rebentava tudo com uma daquelas malhas mais ordinárias e misóginas de funk carioca. Apesar das quebras intencionais entre faixas, era percetível a chama que Duran tinha ateado no público, que tentava dançar e ao mesmo tempo não fazer uma figura ridícula de si mesmo enquanto sentado.
O set foi pautado a espaços por momentos introspetivos e atmosféricos, mas a sua tendência natural era encaminhar-se para a debocheria. O segmento mais imprevisível da noite surgiu quando uma melodia de William Basinski, “Cascade”, que após respirar por pouco mais de um minuto, serviu de pano de fundo a um tema que mesclou influências de reggaeton e drill ‘n’ bass. Seguiram-se momentos dominados pelas sonoridades reminiscentes da UK Bass de Andy Stott e, por fim, o “ambiente kuduro” de Dj NinoO.

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O festival que tem como missão, anos após ano, procurar incansavelmente futuras tendências e apostar em artistas que se afastam dos métodos ou fórmulas comerciais pré-estabelecidas, continua bem vivo. A experiência só não foi completa porque ficámos presos às cadeiras e não pudemos libertar a totalidade das energias que fomos acumulando nos últimos meses. O ponto menos favorável foi o acesso bastante condicionado aos palcos. A tentação de querer assistir ao maior número de concertos possível por vezes tornou-se dececionante pois acabámos por perder alguns artistas que queríamos mesmo ver e ouvir.

2022, podes contar conosco.

 

Reportagem por Rui Gameiro e Tiago Farinha

Fotografia de capa por Eduardo Fialho

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