Mucho Flow 2021: romper com o habitual para trilhar novos caminhos

Mucho Flow 2021: romper com o habitual para trilhar novos caminhos

| Novembro 13, 2021 5:42 pm

Mucho Flow 2021: romper com o habitual para trilhar novos caminhos

| Novembro 13, 2021 5:42 pm

Nos dias 5 e 6 de novembro, Guimarães voltou a ser montra para alguma da mais emergente música feita nos dias de hoje. A oitava edição do Mucho Flow, festival que tem assumido um papel fundamental na descoberta das tendências que ditarão o futuro próximo da música, decorreu em formato reduzido, consequência da pandemia, com mais de uma dezena de artistas distribuídos por vários espaços da cidade. 

O Centro Cultural de Vila Flor (CCVF), a BlackBox do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) e o São Mamede CAE foram os locais escolhidos para acolher a edição deste ano, que incluiu atuações da britânica Loraine James, dos escandinavos Croatian Amor e Varg2™ ou do italiano Lorenzo Senni, entre outras propostas assinaláveis no ambicioso roteiro desenhado pela promotora vimaranense Revolve, que organiza o evento desde 2013.

Naquele que foi um quase-regresso à normalidade (o programa desta edição contou com uma componente clubbing, com concertos e dj sets até horas mais tardias), estivemos pela cidade berço para acompanhar de perto os artistas que, tal como Amen Dunes, Sega Bodega ou Black Midi — que assinaram estreias em Portugal no festival — deverão despontar nos próximos tempos.

Space Afrika

[Dia 1] Romantismos digitalizados

É natural que num festival de pequena dimensão, como é o caso do Mucho Flow, a distinção entre cabeças-de-cartaz e restantes propostas do alinhamento seja turva. O mesmo se pode dizer sobre a hierarquia dos palcos, onde a discriminação entre principal e secundário faz menos sentido. Mas se há espaço que melhor representou os impulsos vanguardistas do festival, esse espaço foi o CCVF, que recebeu o evento pela primeira vez nesta edição. 

Dos quatro espetáculos que decorreram no palco do Grande Auditório, três representaram estreias em território nacional. Os ingleses Space Afrika foram uma delas. O projeto de Joshua Inyang e Joshua Reid, duo de produtores oriundos de Manchester, trouxe consigo os ambientes soturnos do seu mais recente álbum, Honest Labour, que recriaram a partir de um jogo subtil de fumos e luzes estroboscópicas. A partir das texturas da estática, do grão e de outras gravações de campo, como os sons da chuva, do metro ou dos carros que habitam o espaço urbano de Manchester, a dupla pintou um elaborado retrato da experiência britânica dos subúrbios, canalizando os espíritos de Tricky em Maxinquaye, mas também de Badalamenti, Burial e outros que, tal como os ingleses, são mestres na arte de criar ambientes imersivos, tão herméticos quanto evocativos.

E se os Space Afrika nos apresentaram a sua versão de melancolia digitalizada, a dupla do dinamarquês Croatian Amor e do sueco Varg2™ mostrou que o romantismo também pode ser duro e artificial. Figuras proeminentes da cena eletrónica escandinava  (o primeiro fundou com Christian Stadsgaard a Posh Isolation, que abriga alguma da mais avançada música sintetizada dos nosso tempos; o segundo é co-fundador da editora techno Northern Electronics), a dupla tem vindo a encetar ao longo dos últimos anos uma relação de profunda cumplicidade, algo que se manifestou na carinhosa dinâmica do duo em palco, e que conta já com uma série de lançamentos em formatos de duração variada. Body of Content é a mais recente entrada na discografia dos artistas, e o mote para o primeiro encontro em palco da dupla em Portugal, que arrancou desde logo com a quinta engrenada. À boleia de graves bojudos, sirenes alarmantes e linhas de sintetizadores planantes, a dupla conduziu-nos pelos caminhos mais incendiários da música de dança, instaurando um cenário indomesticável de rave que só seria igualado no espetáculo que os ingleses Giant Swan proporcionaram um dia depois no CAE.

Foi precisamente para esse espaço, uma sala de espetáculos tornada pista de dança, que nos dirigimos minutos depois para assistir à estreia de Muqata’a em terras lusas. Figura desconhecida para muitos, o produtor palestiniano é, no entanto, um dos maiores impulsionadores da cultura club do seu país. Conhecido localmente como o “padrinho” da cena hip-hop underground de Ramallah, onde reside atualmente, o músico, que também responde pelo nome de Boikutt, apresentou em Guimarães uma criteriosa seleção de elaborados desenhos sonoros, tão elásticos quanto cirúrgicos e metálicos, combinando ritmos quebrados com ruídos glitch, texturas pós-industriais e os ambientes obscurecidos da witch house e da wave — música disruptiva, como o seu nome indica (“muqata’a” significa boicote ou interrupção em português), que pretende servir de glitch para um sistema corrompido.

Disruptiva foi também a aparição de Loraine James nesse mesmo espaço, que finalizou o programa de concertos do primeiro dia. Com dois discos aclamados editados, ambos pela seminal Hyperdub de Steve Goodman (aka Kode 9), a produtora londrina carrega consigo o testemunho e a história de uma das principais mecas da movida eletrónica (o seu álbum de estreia, por exemplo, foi considerado o melhor de 2019 para a publicação online The Quietus). Envergando uma camisola do Chelsea, a artista sondou com mestria e elegância as diferentes linguagens da bass music, do grime viperino ao drill mais implacável, passando pelo trap, a dancehall e a club descontruída num set híbrido que se situou entre a performance ao vivo e a prática do djing.

Antes, o colectivo Chão Maior enfrentou a temível tarefa de inaugurar um festival. O espetáculo teve início pelas 21h, na Black Box do CIAJG, ao som de chocalhos e drones de qualidades atonais — sinal inequívoco de que nos encontrávamos perante um projeto à altura do desafio. Ao leme do trompetista Yaw Tembe, o grupo de Ricardo Martins, Norberto Lobo, Leonor Arnaut, Yuri Antunes e João Almeida, que não pôde comparecer ao festival, criou uma visão pouco convencional de jazz assente na deriva e na improvisação, alternando entre sopros alarmantes, ecos dissonantes, exotismos espaciais e fantasias dada, cortesia de Leonor Arnaut e da sua admirável performance vocal.

Lorenzo Senni

[Dia 2] Voyeurismos rave

A presença da cantora-compositora Anna B Savage no cartaz do Mucho Flow marcou um curioso contraponto no programa do festival, mas desengane-se quem pensar que se tratou de um terrível erro de casting por parte da organização. Longe disso. A música da artista britânica é em tudo idiossincrática, unindo os polos opostos da slowcore letárgica com os laivos teatrais de uma pop tão sombria quanto operática. Com uma voz andrógina semelhante às de Anhoni ou Circuit das Yeux, que, curiosamente (ou não), também marcou a sua estreia em território nacional no festival vimaranense, Savage provou que é possível fazer muito com muito pouco. Equipada apenas de uma guitarra elétrica e de alguns pedais de efeitos, a artista apresentou um curto mas promissor repertório de canções que se afiguram simples na forma, mas que se revelam complexas nos enredos líricos das suas letras, brincando, com cinismo apurado, sobre o caracter miserabilista que as caracteriza.

De volta ao CCVF, o grande auditório preparava-se para assistir a um momento raro na história do festival: o encontro em palco entre dois artistas de gerações diferentes. Os Fura Olhos – duo intergeracional que junta o veterano Miguel Pedro à artista multidisciplinar Inês Malheiro – passaram por Guimarães, em estreia absoluta ao vivo, para apresentar o seu novíssimo LP de estreia, editado nos metros finais de outubro pela Revolve. Entre vozes entrecortadas e eletrónicas desconstruídas, a dupla desenvolveu uma experiência táctil de música sensorial, ora abstrata ora dançável e hedonista, entrelaçando as qualidades acústicas da guitarra com avançados processamentos digitais.

“Nine moshable tunes here, all showing some kind of searching attitude”. Foram estas as palavras que Lorenzo Senni estampou na grande tela que se encontrava à sua retaguarda, no palco do CCVF, onde se apresentou para um muito aguardado regresso a Portugal (a última passagem do músico italiano pelo país aconteceu em 2016 no Understage do Rivoli). No enigmático parágrafo, creditado a um tal de Rolf Delley (que, em conversações com o cabecilha da Presto?!, descobrimos tratar-se de um pseudónimo criado pelo próprio), encontravam-se termos comuns ao discurso em torno do autor de “The Shape of Trance to Come”, do “pointilhismo” à “ausência de beats” adotada por muitos que, inspirados pela obra de Senni, deram continuidade a um dos mais fascinantes micro-fenómenos da eletrónica moderna — trance cirúrgico, feito de arpeggios hipercinéticos e sem recurso às habituais batidas que sustentam grande parte das tendências da música de dança.

Nove faixas altamente “mocháveis”, feita a tradução possível para o português. E assim foi. Ao som de “Discipline of Enthusiasm”, o produtor encetou uma alucinante viagem pelos terrenos mais maximalistas da música trance, qual rave voyeur, esquadrinhando os seus vários contornos através de uma análise ultra-moderna do passado, presente e futuro do género. 

Já no CAE, os britânicos Giant Swan provaram, mais uma vez, o porquê de serem considerados um caso atípico nas esferas do techno. Depois de algumas datas furadas, devido à pandemia, o duo de Robin Stewart e Harry Wright proporcionou um dos momentos mais suados do festival — frenético, violento e punk até à espinha, munindo-se de uma série de sintetizadores, pedais de efeitos e drum machines para conjurar uma visão catártica e altamente dançável de música clubbing.

Foi assim que terminou mais uma edição do Mucho Flow: sob o signo do risco e do desejo de desbravar continuamente novos caminhos. A noite, no entanto, perduraria até de madrugada com os sets de Lee Gamble e DJ Lynce, ambos a desafiar os limites da eletrónica no contexto do clubbing. 

Fotografia: Ana Carvalho dos Santos

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